terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Não somos nada...



A luz do sol ficou fraca com tantas nuvens negras de fumo semeadas pelo céu.
Cavalgamos sem propósito de chegada, avançamos sem rumo para fugir daqui. Depois se verá o que fazer com esta distracção promovida pelas artes dos infernos. Desconheço porque me são dados a conhecer episódios destes antes de existirem. Passo a fazer parte das suas consequências instantes depois de me serem dados a entender.

Desejo sair daqui, abandonar estes cenários como uma desesperada em busca de forças para resistir, para continuar a avançar. A solidão passaria despercebida se eu não tentasse adivinhar os porquês de tanto desconsolo e de tanta miséria provocada pela destruição que limpou a cidade, se não me viessem à memória as imagens, os cheiros e os ruídos antes destes acontecerem, depois de acontecerem e durante todo o tempo em que estes, efectivamente, subsistem. É como se nada fosse real, como se nada disto esteja realmente a acontecer. A única verdade que sai desta manta branca onde me refugio, é este vermelho que sai de mim e que lhe vai servindo estranhas tonalidades rosadas, manchas de carmim e rosa escuro que me enfeitiçam o olhar e me mantém acordada e com forças para não largar o corpo do cavaleiro. Se me dessem descanso e consolo, estas memórias do que já aconteceu não mais as largaria. O chão vai pedindo a minha presença através da rapidez com que passam as linhas desta cavalgada pelos meus olhos mortiços e assustados. Sinto os olhos pesados e o corpo leve como nunca antes o senti. As minhas mãos ficaram geladas de repente, trementes deixam escapar as forças necessárias para sentir o meu desejo. Escorrego pelo corpo do cavalo que me atropela sem intenção durante a queda e desapareço deste lugar para uma escuridão quente que me acolhe como um perfumado berço de princesa.

Lá longe onde as luzes se apagam, onde os passos deste estranho bailado são estudados, dei conta da queda deste pequeno anjo em forma de rapariga. Sem tempo para o evitar, a rapariga deslizou suavemente pelo Felício que a atingiu com a pata nesse seu voo. Ficou desfalecida no meio do chão, afligindo-me ainda mais este pavoroso início de tarde.

São tantas as cores deste lugar, tantas e tão tranquilas, tão diferentes das outras de onde vim. Nada aqui é parecido com qualquer coisa que me tenha sido dado a conhecer anteriormente, como se tudo, subitamente, passasse a fazer sentido apagando-se de vez todas as mentiras, todos os pedaços sujos que me atormentavam a existência. Sinto-me leve e tão tranquila, transportada pelo ar com este imenso à vontade, como se cavalgasse numa nuvem de espuma perfumada e morna pintada com as perfeitas cores de um arco-íris.
Não sabia que o medo transporta asas pelos céus para nos brindar o corpo com esse presente. Senti o peso desaparecer e o caminho tornou-se mais curto e seguro, mais suave. O tremendo desespero que varreu Lisboa não faz parte deste sonho. Deixei que os pedaços de silêncios sinceros e profundos que tomam conta deste lugar me trouxessem o seu calor, me aconchegassem os medos até que estes não mais fizessem parte da minha existência. Lembro-me do corpo perder peso e equilíbrio, das forças a fugir. Lembro-me das últimas gotas vermelhas a voar até ao manto branco do corcel e lembro-me do ruído que se seguiu, forte e agudo, seguido de um vazio, seguido deste instante.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação XIV


Cedo neste dia comecei a duvidar de minha sensatez. Ameaçaram os meus sonhos com as tonalidades de tudo o que estava para acontecer. Pintaram-se com as imagens terríveis do futuro, e não foi a primeira vez que tal me aconteceu. Durante os momentos em que tudo se passou antes de ocorrer, em que o susto, as mortes, as desgraças e a loucura passaram a cores cinzentas pela minha noite inquieta, uma luz paciente emergiu serena no meio da inquietude. Um rosto de uma rapariga olhava para o pavoroso cenário sem que este lhe provocasse qualquer dor. O chão rodava por debaixo de si. Ela, contudo, permanecia imóvel, tranquilamente imóvel a observar a dimensão caótica do acontecimento. Consegui ver o chão e o corpo da rapariga a rodarem na minha direcção, a rodarem até que ficou virada para mim, cara a cara, permitindo-me gravar na perfeição todas as particularidades da sua expressão, a forma da sua cara, a cor e a dimensão dos seus olhos, as características particulares das suas sobrancelhas carregadas e bem desenhadas que as tornavam marcos quase artísticos nesse olhar, o seu cabelo, as suas orelhas, o nariz, a boca larga de lábios rosados. E foi a força, a intensidade e a luz que emanava dos seus olhos poderosos que não me foi possível esquecer. E agora que se torna quase inútil deixar antecipar maiores tragédias, agora que o pesadelo está transfigurado em cruel realidade, eis que nesta transfigurada ilusão, nesta apocalíptica alteração dos tempos, a rapariga do sonho me aparece por aqui, como se estivesse a aguardar a minha presença. Colocou-se estrategicamente perante a morte para provocar a minha instintiva reacção. Anjo, demónio ou apenas uma coincidência de dimensões despropositadas. Nada me leva a crer que estes acontecimentos possam estar relacionados, a minha racionalidade impede todas as tentativas que o cérebro faz na procura desse caminho. Quem poderá aparecer a alguém, após tão curto intervalo de tempo, em duas realidades tão desconexas e distantes? Estará o mundo dos sonhos assim tão apartado da realidade do que agora nos cerca, ou da consistência daquilo que nos cercava? As extravagâncias e a loucura de uma ópera orquestrada pelas forças mais brutais e desconhecidas abateu-se sobre a capital do reino, e nada me consegue afastar das ideias de que tudo se encontra interligado, de que uma estranha e misteriosa ordem cola estes acontecimentos, fazendo-nos simultaneamente acreditar na nossa capacidade de jogar com eles, de os conseguirmos alterar através das nossas acções, de todas as nossas inconstantes alterações de humor e de vontade. Nada mais falso e mais perfeito. De quando em vez são minados os sonhos e alguns momentos particulares da nossa razão com as apropriadas doses de dúvida e de inconstância. Ficamos com as certezas abaladas, desconcentram-se as nossas capacidades e a razão e a loucura colam-se por instantes à nossa orgulhosa lucidez. Ficamos a observar tudo o que se passa em redor como pequenas marionetas amedrontadas. As palavras e os actos dos outros soam distantes e perturbadores, tornam-se subitamente óbvios, tão pouco singulares, como se tudo já tivesse acontecido ou, sem ter acontecido, como se soubéssemos exactamente todos os passos, todos os gestos e todas as palavras do que está a acontecer. E tu rapariga, a tua presença foi-me antecipada mas nunca imaginei que pudéssemos respirar o mesmo ar ao fim de pouco mais do que umas horas.

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Sair do centro do susto, continuar a correr até ao lado mais afastado desta doença, fugir sem rumo para acalmar os meus pavores. Este senhor médico parece trazer consigo uma das chaves da porta que antecipa o lado de lá dos nossos caminhos. Parece ser capaz de me dar algum sossego e evitar que as minhas pernas e os meus pés desapareçam transformados no sangue e nas bolhas que não sinto. Salvou-me ao afastar-me daquela morte certa, daquele instante em que, sem perceber, parei após a louca fuga em direcção ao centro da partida, ao centro do lugar onde a minha vontade se transformou em visão real. Este senhor olhou para mim e agora seguimos juntos montados neste cavalo imenso e bem bonito. A julgar pelo galope apressado com que vai assustando a montada, também ele parece desejar fugir de qualquer coisa que o perturba. Nisso sinto que somos iguais. Começo aos poucos a voltar a sentir as minhas pernas, os meus pés. É uma dor aguda, húmida e intensa, que toma agora conta de mim. Se não apertasse os meus braços com força ao redor do cavaleiro, já teria caído do cavalo para o meio do chão. Olho para baixo e agradeço a velocidade com que avançamos para longe de tudo, para longe daquela destruição, para longe do cheiro a morte, para longe de tudo aquilo que eu ajudei a acontecer. Se alguém me descobrir os pensamentos morrerei pela força das cordas, se alguém me decifrar os códigos que trago escondidos no centro do meu coração, morrerei pela força das cordas. Melhor será esconder a linguagem por uns tempos. Ao calar a voz não tropeçarei na armadilha das palavras, não irei trair a minha própria confiança, adiarei a morte que me espera pela força das cordas. E sabe tão bem sentir o calor deste abraço, juntá-lo às imagens desfocadas do chão que vai traçando linhas velozes, escutar o compassado ritmo do galope a adocicar os meus receios. Gostava de ter o poder para guardar este momento para toda a eternidade. Nada me resta, nada ficou, nada me pertence, apenas os sentidos, apenas o meu corpo e o que ele me dá a perceber. Este calor, as desfocadas linhas velozes e coloridas, a música ritmada tocada pelas fortes patas do cavalo, são as únicas coisas que me pertencem. Sobram-me as manchas que vão salpicando o branco imaculado da montada, desenhando-lhe na pele estrelas vermelhas de várias formas e tamanhos, como se o corcel fosse um imenso céu em movimento, um céu a cavalgar veloz para nos dizer que nada disto, afinal, está verdadeiramente a acontecer…

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domingo, 25 de outubro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação XIII

Este rosto, este mistério mais a adensar o dia tenebroso. Esta rapariga ferida e ágil que acabou de tombar por cima do corpo de um dos loucos, esta criatura que acabo de salvar de ser esmagada pelos cavalos assustados que um pouco por todo o lado invadem os espaços e ameaçam a segurança dos que tentam escapar por entre o caos. É um embaraço mais que seguramente gostaria de evitar. A cara desta jovem não me é de todo desconhecida. Envolver Lefebvre não será mais um jogo, e as dúvidas que se levantam nestes desígnios continuam sem resposta, avançam pela realidade, fazem agora parte dela e não me dão qualquer resposta. Foi no sonho que me apareceu, tamanha a minha surpresa ao vê-la aqui bem segura em frente a mim. Estarei já morto? Terei falecido algures entre as cobertas durante a noite e a continuação desta experiência que agora vou acompanhando é toda ela passada do lado de lá das portas do Inferno? Afinal, será isto o meu purgatório, a minha cruz, mas como se tão real me sai o sangue colorido e tão reais se vão escutando estes sons de morte e pesadelo? Nas mãos gélidas desta rapariga consigo sentir uma força que não é deste mundo. É um pedaço de céu que tem guardado no seu coração. Não sei quantos anos viajei para trás quando toquei no seu pulso e a puxei com vigor para longe do perigo que não via. Revivo as imagens de muitas das experiências da minha vida, de muitos dos locais por onde já passei, sem opção e sem drama. As imagens ficam pequenas. Como se fosse feito de luz, desapareço por minúsculos instantes deste cenário. Revejo-me em Pompeia, Roma, Paris, Londres, em Amesterdão, em Viena, em Veneza e em Génova, vejo subitamente e de relance todos os grandes amigos e aparece-me finalmente o rosto estranho desta jovem, montada no fiel Felício, que contrariamente à maioria dos corcéis, se manteve tranquilo e quase alheio a toda esta alteração. Vejo que me pede a sua companhia. Quer que a leve daqui para bem longe pois as suas pernas não são suficientemente rápidas para a transportar. Volto novamente a vislumbrar o real tamanho das coisas, mas muito turvas e ligeiramente desfocadas, com uma luz muito fina e intensa a tapar o centro das imagens. Um ponto branco mantém-se forte no centro da minha visão e a cabeça lateja e dói-me ligeiramente. Ao voltar de vez desta rápida viagem e refeito da surpresa, reparo com toda a atenção para as feições da rapariga. Olhos muito escuros e intensos, cabelos longos muito sujos e pintados com as tonalidades cinzentas da destruição, os braços magros e esguios, tal como as pernas que se apresentam bastante feridas e a necessitarem de cuidados médicos. Os olhos continuam a olhar para dentro da minha alma, como se também eles já me tivesse visto anteriormente, e o seu rosto redondo e sujo, com uns lábios perfeitos a desenharem uma boca larga e sorridente, pedem-me ajuda. Lefebvre mantém a sua força e coração de gigante em actuação. Mal se refez das suas actividades heróicas, começou imediatamente a dar instruções para tratar todos os feridos graves. Estava exactamente a iniciar essas tarefas quando reparei nesta jovem a tombar com violência no chão ao tropeçar num dos doentes da ala dos loucos. Quando o seu rosto se virou ficámos naquele impasse que por pouco a vitimava, não tivesse eu agido com rapidez. Grito por Lefebvre que não me consegue escutar, grito por Manuel Constâncio e Mestre Dufau. Só este último me escuta quando já estamos montados no Felício e nos preparamos para cavalgar daqui para fora. Digo-lhe que volto já, que vou seguir na direcção do palácio real para saber as novidades da corte. Temos de saber se terá el-rei e os ministros sobrevivido ao desastre. Temos de saber se somos necessários para os lados dos que mandam na cidade e no país. A rapariga volta a olhar com os seus escuros olhos castanhos na minha direcção. Sabe perfeitamente que a minha primeira vontade não é a de seguir em direcção ao paço real. Primeiro, vou procurar um qualquer lugar afastado de toda esta violenta realidade para lhe fazer umas perguntas. Terá também ela tido a mesma estranhíssima visão premonitória? Terei eu aparecido no seu pesadelo? A mais recente memória que guardei do seu rosto no meu pesadelo é igual, exactamente igual ao rosto que fita novamente o meu como se soubesse exactamente tudo aquilo que nos irá acontecer.

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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

FERNANDINHA


Fugir para bem longe. Fernanda tem as mãos geladas. Não resistiu à minha vontade e afastamo-nos agora para longe da grande praça. Seguimos em direcção ao norte da cidade. Não olho para trás, não procuro ninguém pois já tenho quem queria. São muitos os que fogem como nós. O medo tomou conta de todos e os que sobreviveram às ruínas afastam-se do centro da cidade, afastam-se do cheiro intenso da morte e da loucura. Fernandinha ainda não falou. A sua mão continua fria, os seus dedos agarram os meus com energia, como quem pede neste aperto que tudo não passe de um imenso pesadelo. Quanto mais me agarra, mais lágrimas silenciosas correm pelo seu rosto, mais o seu olhar se fixa nas cercanias distantes da cidade, naqueles pequenos montes que forram a paisagem junto ao céu neste dia negro e tão azul. Não imagina o que o meu coração sentiu. Este massacre colou a sua mão à minha, o meu coração já estava entregue ao seu, a sua companhia foi-me oferecida desta forma. Mal sabe o quanto eu digo bem desta tragédia.

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Para onde segue o meu corpo? Para onde me levam as minhas pernas trementes? Devo voltar imediatamente para trás, para onde as fachadas ardentes escondem os meus pais. Não sei que medo tomou conta da minha voz, das minhas forças, para seguir desta forma abandonada um caminho que não desejo. Correr de volta até à grande praça, correr até que desapareçam de vez estes ruídos, estas sombras, estes cheiros, até que eu desapareça e regresse sã e salva para um qualquer outro tempo ou outro lugar. Desejo que uma imensa mão surja e me transporte rapidamente daqui para fora. Corro desta maneira desorientada para não ter de perceber os rostos espalhados pelo chão, o sangue que corre por todos os espaços, os corpos dos penitentes que rezam desesperados a olhar na direcção de um Deus desaparecido, de um Deus que desgraçou a nossa cidade, o nosso mundo, que nos serviu a morte e o desespero com as forças incompreensíveis do próprio Inferno. Corro descontrolada. Trago os pés em sangue e não os sinto, o corpo não me pertence, as pernas avançam desgovernadas por entre a miséria e a ruína. Se alguma dor pudesse atingir o meu corpo nesta correria desenfreada que me leva de volta ao hospital, seria mais feliz. Corro como se corresse num sonho, para dele fugir, para dele tentar desesperadamente voltar a acordar. Não entendo porque me deixei arrastar tão facilmente para fora daquele cenário. Um rosto sujo e conhecido olhou para mim, um rosto familiar que me trouxe os pensamentos de volta. Afinal não se trata de um imenso pesadelo. As sensações dão-me dores de cabeça e dou por mim nesta corrida sem destino aparente, sem qualquer vontade de terminar. Já não procuro a praça, o hospital, já não procuro nada, já não procuro, apenas corro. Fujo assim em direcção ao longe, em direcção a uma outra história que não esta. Em direcção ao mar não posso pois é o mar que corre em direcção a nós, em direcção a casa não posso pois nada dela se manteve em pé, em direcção ao céu não posso pois não consigo voar e a sua cor está manchada com as negras cores do fumo, em direcção às colinas não posso pois todos os caminhos estão impedidos ou destroçados, em direcção ao passado recente não posso pois o dia de ontem transformou-se e vestiu-se com as negras cores da morte. Corro por correr, até que um destino, um som de um sino ou uma luz me possa dar curso para a viagem. Enquanto isso não acontecer, enquanto continuar a não sentir as minhas pernas e os meus pés, não darei travão a esta corrida.

Não mais irei parar! Alguém vem atrás de mim, alguém me chama, não quero voltar as costas, não vou voltar. Faço por ignorar os espaços que percorro nesta corrida. As mãos que me transportaram há instantes para longe das chamas que engoliam o hospital desejam-me de volta. Não quero voltar, não quero voltar a ter de olhar para rostos conhecidos. Não desejo ser reconhecida, quero que as lembranças desapareçam como estes edifícios desmoronados, como estas ruas, como estas igrejas, como esta cidade. Continuo nesta correria desenfreada e sinto um imenso prazer ao avançar e saltar pelo meio de toda esta destruição, como se não fizesse ela parte de mim, como se estas personagens e este cenário fossem feitos de palha ou do mesmo material com que constroem as nuvens lá no céu. A imensa praça chama violentamente por mim. Essa praça onde tantos estão deitados, onde outros tantos se amontoam vencidos pela tragédia, onde outros ainda fornecem amparo aos mais necessitados, onde as chamas crescem ao sabor do vento que se levanta mais forte à medida que o dia avança, essa praça chama por mim. Corro para lá com todas as minhas forças, corro para lá sem saber porquê, e todas as cores da cidade ficam cinzentas, negras, e o próprio vermelho derramado pelos corpos fica negro, tão negro e brilhante que a intensidade desse brilho sobressai entre todos os outros negros que agora visitam os meus olhos. Só consigo pensar em correr, é tudo tão diferente, tudo tão diferente e tão igual, apesar de tudo, ao que já era. Esta sensação de vingança consumada não me abandona, diz-me que tudo isto aconteceu por minha vontade. Esta estranha sensação de que as minhas ideias obscuras ganharam tanta força, tanta intensidade, foram por mim repetidas tantas e tantas vezes, que acabaram por avançar pelo espesso manto que separa a vontade da razão. E agora corro por cima das consequências do meu pedido concedido, com surpresa e admiração e medo e um incontrolável sentimento de orgulho e vaidade. Corro, fito as minhas mãos e vejo apenas um cinza claro que contrasta com algumas gotas brilhantes de um negro húmido que mancha aqui e além os dedos magros. Ao fazê-lo tropeço num corpo abandonado e caio com violência no chão que se entende para lá deste homem. Deixo-me aqui ficar, só por uns breves instantes. Uma gargalhada descontrolada sai-me da garganta sem que lhe consiga dar travão. O homem está sentado no chão com mais uns dez ou doze companheiros, todos nus, gritando e esbracejando alegremente, apontando para tudo aquilo que arde ou desaba com uma estranha alegria no olhar. E senhores médicos mui honrados aqui estão reunidos, escaparam da derrocada e do incêndio que consome o hospital. Não espero ver os meus pais a sair com vida daquele inferno, a humanidade e o universo mudaram para todo o sempre e a sua sobrevivência seria um prolongamento indesejado desse passado. As minhas preces e os meus sonhos evocaram o medo e o espanto, contactaram com as forças mais negras e escondidas da minha alma para se transformam assim, desta forma, em realidade. Escolheram esta forma incompreensível de me fazer a vontade, esta poderosa e inimaginável forma de destruição. Sinto-me finalmente em casa no meio desta poeira cinzenta, destas linhas negras ensanguentadas que me orientam o caminho, e estes misteriosos homens desnudados dirigem para mim, alinham as suas mãos com as minhas, levantam-me do chão com todos os cuidados. Estou em pé no mesmo exacto local de há pouco, onde em silêncio olhava com a maior admiração para esta obra que ajudei a criar. O peso que da improvável força dos meus desejos e das minhas preces germinou esmaga-me o corpo e as ideias. Continuo sem sentir os pés e ao tentar avançar novamente feita louca pelo meio do massacre uma mão forte trava-me as vontades. Alguns cavalos mais nervosos atropelam feridos e correm sem destino, tal e qual a vontade que sinto em os perseguir. Contudo, não tivesse essa mão forte travado esta minha vontade, teria sido atirada ao chão e pisada pelos animais que fogem desorganizados, atropelando e saltando por cima de tudo e de todos. Surgem de todas as ruas e passam na grande praça do Rossio em galopes estranhos e muito enérgicos. Poucos, muito poucos, trazem cavaleiros na garupa. Tudo mudou, definitivamente nada permanece igual ao que já foi. O dono desta mão pertence a um médico. A sua voz e as suas palavras tentam acalmar-me. Tenho medo de ficar sozinha, e tenho medo desta multidão, muito medo destes estranhos que não sabem que fui eu a causadora de tanto mal. E se descobrem, se as mesmas forças que me deram ouvidos aos sonhos e vontades descontroladas lhes disser que rezei para que tudo isto pudesse acontecer? Vou ficar quieta mais uns instantes por aqui. Afinal, estou órfã, e muitos mais estarão por via da força das minhas palavras mudas. Para fugir à morte, se for verdade que tudo isto está mesmo a acontecer, fico abrigada na sombra das doces palavras deste homem que me procura proteger. Os caminhos percorridos e os corpos pisados na minha desenfreada correria, esses, continuam negros e cinzentos como toda a restante paisagem da minha cidade destruída.

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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

LEFEBVRE


As sobras desta cidade serão poucas. Alguém no reino terá de conseguir reunir forças e muitos braços para ajudar a amenizar as chamas deste inferno. Mas quem vejo? Lefebvre, meu bom amigo, ei-lo que vem saindo das sobras do hospital. Que figura, verdadeiramente notável tudo aquilo que conseguiu fazer! Os últimos sobreviventes seguramente lhe devem a vida. Muitas foram as almas que aqui se nos vieram juntar graças à sua coragem e estoicismo. E os meus receios, a minha inquietude era mais que uma lembrança escondida nas minhas recordações. A estranha forma como essas imagens, como esses indicadores me são dados a conhecer, muito, muito raramente, não se conseguem explicar. A realidade está-lhes entranhada com um vigor tão intenso, tão profundo, que se funde com eles, com calor, com muito frio, com todos os cheiros e sabores que lhes pertencem. Se delas desse conhecimento, se delas me atrevesse a falar, não mais seria quem sou. Mas as de hoje foram, de longe, as mais incontroláveis, as mais fortes e perturbadoras. Razão tinha o meu receio em afastar de mim a nobreza e a dúvida, e delas dar notícia ao bom Lefebvre. Quantos terão sido poupados do desastre? Quantos terão sido afastados da morte cruel que atingiu Lisboa com tamanha crueldade? E nós, salvos para seguir um caminho que se afigura terrível e que exigirá toda a perícia, toda a dedicação e toda a nossa ciência. Tenho de abraçar o amigo, tenho de lhe sentir o corpo e lhe dar conhecimento da minha imensa alegria. O aviso não provocou o seu desaparecimento, as minhas palavras avisaram-nos e arrastaram-nos para este dia com uma estranha e incompreensível exactidão. Ao encontrar os seus olhos, ao ver aqui neste instante o rosto do amigo, o tempo parou. A intensidade do momento ficará eternizada para sempre nas minhas lembranças. Cansado, oprimido, de vestes rasgadas, respiração ofegante, os braços ensanguentados, os cabelos queimados e patinados de cinza e de negrume, um corpo imenso vergado ao peso da missão, mãos assentes nos joelhos e cabeça erguida a olhar para mim como um feroz animal selvagem acabado de sair de uma contenda. E os seus olhos azuis, a luz intensa que sai dos seus imensos olhos azuis, a expressão de alegria, de intensa satisfação, de sentimento de ter cumprido a sua parte nesta estranha missão, essa expressão, jamais conseguirei fazer desaparecer de mim, por todos os anos que dure a minha vida.~

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terça-feira, 6 de outubro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação X


Será possível? Não se consegue avançar pelo meio de tanta destruição. Corpos aos milhares, como milhares são os que caminham sem rumo pelo meio dos detritos. Luto desesperada contra a minha vontade de chegar ao Rossio, lá onde o hospital está em chamas, lá para onde correu o meu senhor Lefebvre. É praticamente impossível. As ruas e calçadas estão arruinadas, os escombros cobrem tudo, os edifícios que não estão em chamas ameaçam ruir, as pessoas estão desesperadas, alguns aproveitam-se dos mortos e dos feridos para lhes retirarem os pertences. Por aqui não consigo chegar lá abaixo, será muitíssimo complicado conseguir essa façanha. Arriscarei a vida se insistir. A cidade ficou, para além de destruída, completamente louca e desorientada. A acreditar nas palavras do senhor médico, a dar razão às razões de Lefebvre, tenho de caminhar até à casa de Santarém para onde nos deu ordem de abalada. Desde que as mudanças foram iniciadas nunca mais houve descanso. Em Santarém tudo é mais tranquilo. Se o senhor Lefebvre me mandasse lá ficar, não me importaria. Não consigo encontrar doçura na ordem dada de ficar por lá à sua espera. Não sei sequer se estará vivo, se sobreviveu a toda esta destruição. As pernas fogem-me na direcção da desgraça mas a minha cabeça permanece sensata e pensa ajuizadamente sobre o que fazer a seguir. Se as ordens foram dadas para nos proteger, seria cruel que o destino tivesse transportado nas asas misteriosas de um sonho esta terrível notícia para de nada ela servir. Seguirei rumo a Santarém, seguirei até lá e aguardarei pela chegada de Lefebvre. Se estou viva, se todos os que serviam nesta casa já se encontram a salvo, se não fazemos parte desta imensa quantidade de cadáveres que se encontra espalhada por toda a cidade, então o gordinho também está vivo!

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- Desperta Fernandinha, desperta, acorda. Pareces uma estátua assim parada feita tola a olhar para o hospital. Olha só para tudo o que aqui trago comigo. São tantas as riquezas, tantas maravilhas, tanto metal, que te posso transformar numa rainha. E não fosse a onda ter feito desaparecer um saco no passeio, não fosse ela ter crescido mais e com uma força maior do que a esperada, e outro tanto te teria para oferecer. Estás a ouvir-me Fernanda? Não me digas que estás à espera dos teus pais?! O hospital está todo destruído e o que ficou em pé arde como todas as outras casas que não ruíram com a força dos abalos. Temos de sair daqui depressa Fernanda. Anda, vem comigo e nada te faltará. Doidos e brutos como são, eram bem capazes de te rebentar com pancada se tivessem saído de lá com vida. Por mim, que ardam nessas fogueiras bem lentamente, para que todo o mal que te fizeram lhes passe devagarinho pelos corpos. Anda, vem comigo, tratarei de ti como mais ninguém no mundo alguma vez te tratará. Temos de sair desta cidade destruída bem depressa. As pessoas começam a ficar cada vez mais assustadas e enlouquecidas. Sabe-se lá que mais ainda pode vir a acontecer. O que consegui juntar dá para todas as nossas necessidades, pelo menos para os próximos dois ou três anos. Vais ver que tudo se irá resolver. Afinal de contas os teus pais só te espancavam, tratavam-te como não se trata um animal. Deixa-os ficar, mesmo que façam parte desses últimos que se atiram pelas escadas do hospital abaixo, mesmo que façam parte desses que não se levantam depois do acidentado trambolhão, deixá-los para aí ficar Fernanda, deixá-los para aí ficar.

Mas porque se mantém ela assim tão ausente? Não consigo arrancar-lhe um movimento. Está tal e qual uma estátua. As chamas que já saem dos telhados destruídos do hospital transformaram a minha Fernanda numa estátua de carne e osso. Os seus belos olhos castanhos não pestanejam, o seu rosto não se altera em feições, mantém-se completamente firme numa estranha e sublime ausência. Apenas o seu pequeno peito vai dando sinais de vida, subindo e descendo ao ritmo do crepitar das chamas, das constantes vozes que vão chamando pelos seus em direcção ao céu, das quedas atabalhoadas de todos aqueles que por aqui vão andando, correndo desorientados, avançando em direcção ao que já não é, procurando por razões onde elas não podem ser encontradas. Parece tal e qual uma santa, e nem a pele suja e as vestes gastas e cansadas lhe diminuem a luminosidade que parece sair de si assim tão firme, tão distante, tão perfeita. A minha vontade em a levar para bem longe daqui serenou por uns instantes. Este último minuto trouxe-me uma Fernanda um pouco mais calma. Os seus grandes olhos já não estão tão fixos e distantes. Mantém toda a sua atenção no edifício em chamas, mas já olhou para mim, uma única vez, é verdade, mas o pequeno sorriso que desenhou nos lábios ao perceber a minha presença aqueceu-me a alma e o coração. A Fernanda é a mais bela rapariga da cidade, e nada nem ninguém, nos poderá alguma vez vir a separar. Dou por mim a agradecer a estes deuses destruidores o favor que me fizeram. Do meio desta desgraça, os pais da Fernanda parece não terem tido a sorte de escapar dali com vida. Essa é uma sorte que caiu dos céus, que saiu do chão com toda a violência, e que me dá a possibilidade de ficar junto com a Fernanda para sempre. Somos os dois filhos da mesma desgraça, uma que nos deu estes caminhos e não outros para percorrer. Quem me dera poder ter outra natureza que não esta. Sempre me desprezaram, não só pela minha fealdade como pelo meu tamanho, mas acima de tudo, pela minha incompreensível esperteza. Pequeno larápio, és uma peste… , diziam, sempre a dominarem as vontades de me cuspirem na cara ou de pontapearem o pequeno ser que sempre fui. Só a beleza de Fernanda a chamar por mim, desde cedo, desde que os seus imensos olhos castanhos e a sua pele de princesa tocaram na minha alma. Pego na sua mão e puxo-a daqui para fora. Correr é tudo o que importa. Correr muito e bem depressa para a zona mais a norte da cidade, para lá de toda esta confusão, de todos estes mortos, de toda a matança escondida que alguns miseráveis assassinos operam ao desbarato aos mais frágeis sobreviventes. É um pecado, um mal que não se transfigura mais.

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terça-feira, 29 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação IX


São os libertadores das profundezas que delas se escapam para vir salvar o mundo. Invisíveis e poderosos destroem tudo ao sair das entranhas da terra. Onde se esconderam todos estes anos? Vieram-me visitar tantas e tantas vezes à cela durante a noite, durante as madrugadas em que gemia desesperado por um auxílio. Uma voz me ia avisando, depois duas e três e depois milhares, que todos iríamos ser julgados e abandonados, lançados como pequenos grãos de nada soprados pelo vento gelado que vagueia solitário no dia do juízo final. Não dormi, não dormi, não durmo agora, não sinto frio apesar de tudo. Tudo pega fogo. É como já foi, como já foi. E depois ninguém consegue apagar as línguas amarelas e vermelhas que querem chegar aos céus, que querem voltar para junto de quem as enviou, que lhes envia as almas de todos aqueles que já matou. E os senhores médicos empurraram-me e a todos os outros também. Empurraram-nos e indicaram o caminho da luz, do dia em liberdade, em liberdade, e como prova de que não minto, de que não minto, os libertadores das profundezas arrancam as caras às casas e às igrejas, atiram os telhados, as janelas e as portas ao chão, arrancam todas as pessoas lá de dentro para lhes lançarem os restos das paredes para cima. E nós fazemos o que os bons senhores médicos nos disseram. Ficamos sossegados no centro da praça a assistir ao trabalho dos libertadores. E este ruído estranho que continuo a escutar, este ruído acaba com o resto das minhas forças. Este martelar que ouço e que se repete mil vezes sem nunca parar, que se repete como se as obras nunca terminassem dentro das minhas ideias. Agora ficamos aqui à espera dos senhores invisíveis que nos vêem buscar. Até alguns dos senhores médicos já aqui se encontram à espera deles. E que dia de festa, e são tantos os que nos vieram visitar! A praça tem tanta gente como no dia em que o hospital pegou fogo. As caras das pessoas que vieram ver a cor alaranjada da noite eram bonitas. As caras que estão aqui deitadas ao pé de nós são diferentes, são caras que temem os libertadores, que temem os libertadores, e como não os conseguem ver, como só lhes sentem a força que tudo destrói, que tudo limpa e desmancha, não mostram a alegria dos que nos visitaram na noite do incêndio. Nas noites em que estes senhores invisíveis me fizeram companhia, ensinaram-me tudo o que de mais importante havia para ensinar, sabem mais sobre todas as coisas do que todos os reis ou rainhas deste mundo. Contaram-me tudo acerca deste dia em que juntos iriam sair das profundezas da terra para nos vir libertar. Só vai ser possível perceber a nossa verdadeira dimensão pelas forças que serão libertadas ao sairmos das nossas habitações escondidas, disse um dos libertadores numa das muitas visitas que recebi. Avisei o Paulino e raspei na parede com as minhas unhas as histórias todas que me foram segredadas, e quantas mais unhas gastava, mais noites e dias me deixavam fechado na solidão gelada dessas únicas companhias. Arranquei os pedacinhos todos na procura das palavras, na procura das palavras, até que no escuro, com os olhos quase cegos, uma dessas noites, os libertadores se tornaram perfeitamente visíveis. Foi assim que os comecei a conhecer melhor, foi assim que me contaram todas as peripécias deste dia, e quanto mais as explicava aos senhores médicos, quantas mais noites e tormentosos castigos me eram servidos em resposta, até que me deixei disso e cortei a língua para não mais ter vontades de contar. Mas deixar de escrever com as unhas e com o sangue dos meus dedos, isso não consegui evitar. E eis que o dia chegou, e que sinto um pouco de acalmia nas marteladas, nas vozes e nos castigos. São numerosos os que hoje se reuniram para nos vir salvar. A qualidade do seu trabalho e da sua caminhada fica marcada pelo céu que perde a cor, pelo rio que fica seco e por uma cidade totalmente desmoronada. É só desta forma que o trabalho dos libertadores pode ser correctamente realizado, só desta forma. Apagar, tudo apagar, destroçar, despedaçar, destruir, aniquilar, para que se pense a desgraça, se equacione a miséria e a infinita insignificância daquilo que somos, daquilo de que somos construídos, de qual o nosso verdadeiro lugar neste mundo, nesta cidade e nesta praça. E se as águas do rio lhe tinham sido roubadas, também a vontade em lhe voltar a encher as entranhas foi rápida. Tão aniquiladora como todas as outras forças acordadas na saída dos libertadores das suas casas escondidas, também a forma como encheram o leito do rio com as suas águas provocou mais uma intensa demonstração do seu imenso poder. Saíssem sons decentes pela minha boca mutilada, que daria graças e muitos vivas pela glória deste dia. Sempre louco, sempre louco, o Ramiro velho não tem como ser tratado, é deixarem-no apodrecer para ali escondido, não fossem os seus ricos e poderosos patronos, e já teria aparecido morto na cela uma dessas noites de ataques violentos e de constantes massacres e marteladas na cabeça do enfermo. E sempre as visitas repetidas dos libertadores a contarem-me baixinho e no meio da maior das barafundas, como é que tudo acontece, como tudo se passa, e como tudo é, afinal, bem diferente daquilo que os mais doutos e instruídos consideram. Vão agora poder explicar tudo muito bem uns aos outros. Mas como, se não sabem nem imaginam que tudo se deve a estes gigantescos e poderosos libertadores que a todos nós, afinal, vieram salvar!

Berrarei já a toda a multidão aqui reunida uma centena de vivas aos libertadores!

terça-feira, 22 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VIII

Desconhecia esta minha necessidade de vestir a pele de soldado e aventurar-me sem pensar nesta perigosa missão de resgate. As paredes do hospital ameaçam ruir a qualquer instante. Nos tectos as vigas continuam a ser agitadas e pode-se olhar o céu pelos enormes buracos causados na estrutura danificada do telhado. Vê-se muito fumo, o ar está pesado e respiro com grande dificuldade. Parte da ala norte para lá do corredor principal que dá acesso ao grande claustro está a ser consumida pelas chamas. Avanço como um louco destemido, meio cego meio incrédulo, como se não fizesse parte desta triste situação. Empurro, puxo e gesticulo, vou bradando e ordenando a todos os que se conseguem movimentar por entre esta desgraça, numa voz já rouca mas ainda poderosa, que saiam, que corram na direcção das janelas e não das alas ou dos corredores, pois tudo ameaça tombar ou ser consumido pelas chamas. As janelas dão acesso imediato ao exterior do edifício. A altura a que se encontram do chão não é exagerada e vou avisando os mais capazes que devem auxiliar os debilitados, os enfermos, mesmo à custa de pernas ou braços partidos, isso é maleita menor numa vida que sai poupada. Apenas se encontram aqui os mais incapazes. Os doentes e todo o pessoal que se encontrava no piso superior desta ala hospitalar deixaram de poder descer pela escadaria principal que lhe dava acesso. Os últimos degraus transformaram-se em completa ruína durante o violentíssimo segundo estremeção. De lá de cima até onde me encontro vão mais de dez ou doze metros de um espaço vazio e decadente. Mais de uma vintena de olhos aflitos suplicam-me sem palavras por uma qualquer ajuda que os possa vir a retirar daquela situação. Desapareceram todos subitamente na direcção oposta à do enorme vazio arquitectónico, pois o tecto sobre eles começou a produzir um violento ruído dando aviso sério da sua breve derrocada. Nunca mais os vi. Por instantes fiquei com a sensação que aquelas almas me vão perseguir e povoar os sonhos para toda a minha existência caso venha a sair com vida deste tormento. Nada se pode fazer. Se saltarem lá de cima a queda seguramente os matará. Tento imaginar estratagemas para tentar salvar mais alguns destes pobres desgraçados mas só consigo carregar um corpo de cada vez. Não sinto nenhuma dor, nem sequer sinto o meu corpo. Estas memórias são apenas imagens, é tudo consumido de rajada pelo sentido da visão. São apagados os toques, os cheiros, os sons e os sabores, apesar de, por instantes, sentir na língua um travo amargo muito intenso que desaparece tão rapidamente como por lá foi semeado. Tudo se passa com a duração da eternidade. A rapidez com que tudo acontece é filtrada pela mente e parece que o tempo é transportado nas costas de um jumento velho e preguiçoso. E estas palavras não as consigo controlar. Nascem por via de uma necessidade incontrolada que tenho de ir falando comigo mesmo mentalmente. Assim mantenho-me atento, observo todos os detalhes e todos os espaços perdidos onde algum sobrevivente possa estar refugiado a necessitar de ajuda. Servem também para me iludir, para me fazer sentir capaz e forte nestas tarefas, para que não venha a sucumbir por debaixo de uma viga em chamas ou de uma parede arruinada. O que mais posso fazer? Queria ser como um tigre poderoso, poder saltar ligeiro por cima destas fogueiras, trepar pelas vigas em chamas já tombadas e saltar ligeiro até ao topo do edifício para poder resgatar tantos quantos o meu poderoso corpo de felino conseguir aguentar. A pele listrada serviria de escudo protector e a cor laranja lembraria às labaredas altivas que por elas estaria a passar o rei das chamas. Nada me poderia travar nessa demanda. Ganho uma inusitada esperança ao pensar em mim com um enorme gato selvagem. Ao contrário de tudo o que seria razoável, ao contrário daquilo que o meu pesado corpo me vai avisando, só me consigo imaginar como esse rei asiático e sinto uma vontade incontrolável em avançar por estas vigas em chamas até alcançar o primeiro piso do edifício, custe lá o que custar. Não é normal, mas tal como há instantes, não sinto o peso do meu corpo. O espírito vai-me avisando dos perigos mas simultaneamente alimenta-me as acções como se o Lefebvre que sou tivesse agora uma pele alaranjada mesclada com os matizes negros das suas listras. Subo pelas vigas em chamas, as que ainda são capazes de suportar o peso de um homem adulto. Ignoro o fumo e as manchas avermelhadas que consomem o negrume de algumas madeiras mais frágeis já transformadas em carvão. Com grande frieza e calculismo, grito do topo de uma das vigas para o piso superior de onde há instantes tantos olhos me miravam. Trinta segundos de berros numa gritaria descomposta que se deve ter escutado no próprio inferno. Dois senhores aparecem, olham-me com as mesmas expressões desalentadas e sem pingo de esperança. Grito-lhes para que recolham o mais rápido possível todas as camas, colchões e móveis que consigam encontrar. Que os atirem aqui para baixo uns por sobre os outros até que fique uma pirâmide de detritos e de objectos capaz de aligeirar a dimensão cruel desta abertura. Se por cima dos móveis lançarem vestuário e alguns colchões podem aliviar a queda e promover assim a salvação para alguns deles. O tempo está agora, como sempre esteve desde o início do incêndio, contra todas estas tentativas de resgate. Nos seus olhos percebi a força que as minhas palavras lhes transmitiram. Os barulhos que se escutaram passados breves instantes, vindos do topo do patamar onde a escadaria deixou de existir, davam a entender que estavam já a arrastar material para a função. A minha ajuda de tigre acabou por ser apenas esta. Mais seria humanamente impossível. Não posso manter-me neste lugar por muito mais tempo. Desço novamente em direcção ao chão onde já se começam a amontoar toda a espécie de móveis e tralhas, camas e demais mobílias, móveis que chovem no meio do chão atirados esperançosamente por um grupo de doentes e dois auxiliares que estão encurralados lá em cima à mercê das chamas que alastram a quase todo o edifício. Arrisco-me a ficar por debaixo dos telhados que tombam e do mobiliário voador. Essa sorte apareceu-me agora nas ideias como sendo uma coisa doce e verdadeiramente sublime. É com felicidade que vejo alguns destes doentes do piso superior atirarem-se para cima da pequena montanha de mobiliário, lençóis, colchões e até muitas trouxas de roupa suja que conseguiram amontoar naquele espaço. Alguns escapam maltratados dessa queda. Ainda assim foram mais de quatro ou cinco os metros que ficaram por preencher. Mas se cambaleiam, se gritam de dor e gemem com os braços e as pernas que acabaram partidos nesses voos, é porque estão vivos e dão sinais bem claros e audíveis do seu sofrimento. Uma lágrima e mais outra, agora de contentamento, correm-me pelas faces sujas ao ver este grupo de seres humanos escapar a um trágico fim por via da violência do incêndio que consome agora o espaço de onde acabaram todos de saltar.

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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VII

É terrível o que se está a passar lá em baixo. As minhas pernas continuam tão fracas. Contrastam com as dores que se fazem sentir intensas no meio da minha alma. São capazes de a destruir. O meu senhor Lefebvre estará vivo? O que será desta nossa vida sem restar de pé uma única parede, sem que as águas engulam de um só trago os restos dos corpos destroçados, alguns ainda cheios de vida mas presos contra as suas vontades no meio das pedras e do entulho que os tapa como uma colcha de morte. Vejo nos rostos das pessoas, destes homens e mulheres enérgicos e corajosos tanto desespero e tanta dor. Cresce em nós a impossibilidade de obter resposta à pergunta que todos lançam aos céus sem mover os lábios, sem libertar um único som que seja nessa função. Porquê Deus Nosso Senhor Todo-poderoso, porquê? Será porventura possível teres abandonado tantos devotos, teres marcado este dia tão especial com a marca mais fatal das forças do Demónio? Deixá-lo tomar conta desta nossa cidade para dela fazer um joguete, para despedaçá-la a seu bel-prazer, para inundá-la lançando pelas suas ruas, vielas, praças e escadarias um mar embrutecido que tudo engole na maior das fúrias e sem qualquer aviso? Afinal és um Deus pouco poderoso, um aliado vil desse outro destrutivo monstro que se entretém a derrubar Lisboa pedra a pedra, fachada por fachada, que mata e semeia pelas ruas da cidade milhares de cadáveres e uma imensidão de ruínas. O povo está derrotado, o Mundo inteiro tem de saber desta Tua traição. Afinal de contas que Deus és Tu que nos abandonaste, que te esqueceste deste povo honrado que tanto te estima e venera? Nada poderá ser como já foi. A dor por Vós aqui derramada fará memória. Ninguém poderá esquecer este dia em que Deus faltou a todo um povo, a toda uma cidade, a todo um País. Ninguém, ninguém! Para qualquer dos locais para onde olhe, desde a ribeira, desde o cais, desde as torres do palácio por onde os barcos passam arrastados e se esmagam contra as paredes do edifício, transportados às costas por uma segunda onda gigantesca que avança pela cidade até quase ao Rossio, até quase ao Hospital de Todos os Santos.

Tenho de ganhar a coragem necessária para descer até aos infernos que ali em baixo se agitam. Lefebvre não pode estar morto, não seria justo. O seu amigo médico por algum motivo nos alertou antes desta catástrofe se abater sobre a cidade. Esse é outro estranho desígnio para o qual nem vale a pena tentar arranjar explicação. Quantas vezes também nos meus sonhos se parecem antecipar acontecimentos com o peso gigantesco e quase cruel do realismo. São tantas as noites passadas em claro após pesadelos dessa espécie. São tão reais que mesmo depois de acordada me parece estranho encontrar-me do lado de cá dessas histórias. Muitas são as vezes que me vejo mais velha do que sou, ou a passear por locais que desconheço mas que de tão familiares não me causam qualquer estranheza. Ou como daquela vez em que, alagada em suor, quase vim para a rua descontrolada por pensar ser eu capaz de voar, tamanha a leveza e a rapidez com que senti o meu corpo levantar voo e passear ligeiro por cima das árvores, ora descendo a pique ora subindo acelerado na direcção das nuvens brancas mais distantes. Ou de uma outra em que fui capaz de descrever todos os movimentos que Lefebvre executou quando tratou dos muitos feridos do grande incêndio que destruiu parte do hospital agora novamente em ruínas. Eu, que nunca me atrevi sequer a colocar um pé que fosse nos degraus que dão acesso à capela do edifício, quanto mais conhecer os procedimentos, as formas ou os gestos necessários para auxiliar moribundos ou enfermos. E nesse estranho sonho, acompanhava o meu Lefebvre na sua missão de auxílio, limpando e preparando os doentes com grande mestria e à vontade, cozendo, sarando e tratando das diferentes fases dos tratamentos e das operações como se em toda a minha vida não tivesse eu feito outra coisa. Esta misteriosa capacidade dos sonhos, esta misteriosa capacidade que possuem de desembrulhar mensagens ou histórias de coisas que parecem estar para acontecer, é algo que todos nós sentimos mas que preferimos manter escondida na maior das seguranças. No fundo de quem somos, por vezes, as vontades e os receios misturam-se como um guisado de imagens e sabores secretos que explodem destas maneiras tão reais, tão intensas, em muitos de nossos sonhos. E graças ao seu misterioso poder, esse poder que se revelou nesta madrugada ao médico ilustre amigo de Lefebvre, aqui estou viva para testemunhar esta tragédia. Viva e assustada como uma criança perdida. Se alguém duvidava que tudo pode desaparecer e mudar no curto espaço de segundos, o dia de hoje servirá para todo o sempre como prova do poder inimaginável das circunstâncias divinas e das suas sagradas combinações.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação VI


As pétalas destroçadas que do meu coração caem derramam no chão o vermelho da sua dor. Estas imagens e estas evidências fazem-me crer na destruição do próprio paraíso à qual nunca pensei assistir. É complicado manter-me lúcido numa paisagem como esta. Não controlo as lágrimas que silenciosamente me turvam a visão. Servem para aliviar a agressão daquilo que se observa. Nenhum Santo por aqui fez a sua aparição, nenhuma alma por cá se sente protegida. E não mais descobri Lefebvre no meio desta hecatombe. Há quem corra desgovernado por entre a destruição, sem promover uma única palavra. Correm seguramente para sentir que esse acto lhes trará aqueles que procuram, lhes dará de novo a manhã serena conforme nasceu neste dia, e não este momento transformado em negrume e destruição. Não sabemos o que fazer. Para qualquer lado que nos viremos são mortos e mais mortos até onde a vista alcança. Loucos desvairados a aliviarem as pertenças de muitas vítimas e cadáveres. Almas perdidas, mulheres e crianças, muitas crianças, a procurarem por um entendimento em forma de oração, de ocupadas formas de não se deixarem levar pela loucura e pelas terríveis sensações que a todos nós perturbam. O que se passa é que a mente dá sinais de abandono, quer desaparecer para um outro tempo, um outro lugar. Depois volta, dá sinais de regresso, diz aos resistentes, aos que foram escolhidos para ficar, que não é uma doença, não é uma esperança, nem uma precoce alucinação, nem um castigo, nem um lamento, é a força invisível da humana resistência à morte que nos transforma a alma para resistir ao que se sente e vislumbra, ao que se cheira e ao que se adivinha. Os que tudo perderam são mais de metade dos habitantes desta cidade, seguramente bem mais do que metade. Poucas são as zonas que resistiram ou resistem aos tormentos. E os tratamentos que serão necessários para voltar a dar vida à bela capital do reino durarão mais de metade da vida dos que tudo perderam neste desafortunado dia. Precisaremos todos uns dos outros para levantar estes restos e voltar a por de pé os sonhos dos Lisboetas. E o trabalho que até aqui me trouxe, as tarefas que me estariam destinadas no Hospital parcialmente destruído e que as chamas consomem, foram agora mais do que acrescentadas. Cresceram como as questões crescem ao olhar ao meu redor. Foi roubada a vida da cidade. Abriram-lhe o cérebro para lhe retirar a vontade de viver. Sobreviverá Lisboa a este fracasso? Terá a coragem e a força para se levantar destas ruínas, destes incêndios, deste mar que a deseja engolir e arrastar até ao lodo escondido no fundo dos oceanos, até aos infernos para onde parece desejar arrastá-la sem piedade? Os olhares de muitos de nós alcançam apenas o infinito. Atabalhoadamente atravessamo-nos aos corpos e aos rostos de cada um fitando aleatoriamente um pretenso infinito com os olhos carregados de lágrimas.

Manuel Constâncio e Mestre Dufau acabam de se juntar a mim tensos, brancos, com o peso da incredibilidade carregado nos olhos e nos corpos. O maior local de crime jamais projectado por um criminoso aqui ficou servido. Uma cidade inteira vitimada pelas indecifráveis forças dos Infernos. Metódicas, eficientes, secretas e letais como só essas forças conseguem ser, confirmaram-se em Lisboa para que todo o Mundo acorde de vez e não mais duvide da sua existência.

Uma mensagem servida com a delicadeza da machadada de um carrasco!

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domingo, 6 de setembro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação V


O medo avança pelas ruas transformadas num mar de detritos, como uma montanha aquática de corpos afogados e despedaçados, de almas destroçadas. É um caminho perdido que transporta a morte pelo meio da cidade arruinando a pouca réstia de esperança que alimenta muitos dos sobreviventes, que me alimenta a mim. Vai-se a alma destruindo com a mesma rapidez com que cai a cidade.

Qual será o ponto de paragem desta visão, deste pesadelo suspeito que apenas me foi dado a conhecer numa ínfima parte e que agora se estende como a maior e mais trágica de todas as óperas já compostas? Na minha cabeça surge intensa a maior de todas as dúvidas. Só posso estar a sonhar! Sinto as vibrações da realidade mas devem-se seguramente a uma qualquer parcela da memória que não se desligou durante o pesadelo e que se mantém activa assustando-me com este sonho tão real. Não existem sinais de tréguas da parte dos elementos. Será impossível fazer apagar da minha vida os resultados tremendos desta experiência. Desejo acreditar tratar-se ainda de um sonho, de um horrível e monstruoso pesadelo carregado com o enigmático peso da realidade. A verdadeira realidade é a que ficará eternamente marcada na memória deste povo. Transforma-se a paisagem com a lama, as poeiras arrastadas pelas águas sujas que teimam em tentar alcançar as ruelas que permanecem secas e empoeiradas, negras com a fuligem e os intensos fumos negros que carregam o ar que se vai respirando. A maior das minhas estranhezas é de não conseguir perceber a verdadeira dimensão do tempo. Tudo acontece de forma tão rapidamente desadequada, de maneira tão apressada que furtou parte de mim nestes abalos. Foi como se me tivesse deixado afogar como esta cidade que já não existe. Contudo, permaneci uma pequena eternidade no centro desta praça a contemplar e a sofrer, como todos os que aqui estão, estas lembranças em forma de castigo. Envolvem-se as partículas de tempo à nossa volta alterando-nos a razão, a visão e os restastes sentidos. Os músculos perdem vigor e as entranhas do corpo rugem como um animal selvagem ameaçado. Ficamos perdidos no meio de tanta incerteza e destruição. Perdi de vista todas as referências que a larga praça me dava pois sofreu mudanças radicais. As pessoas espalham-se por todos os espaços mostrando sinais de grande cansaço e esgotamento físico e mental. Perderam-se seguramente milhares de vidas nesta improvável manhã. Porque me foram dados os sinais deste dia? As imagens estavam quase todas incompletas e não transmitiram a real dimensão da catástrofe. O impacto das minhas palavras foi quase nulo e deu a Lefebvre vontade para avançar sozinho para o interior do hospital em chamas. Não mais o vi desde esse momento. Os loucos continuam aqui sentados, desnudados mas respeitadores e bastante serenos perante a dimensão do calamitoso cenário. A esmagadora maioria dos edifícios está agora em chamas e escutam-se barulhos infernais que surgem de todos os recantos da cidade destruída, juntamente com a barreira de água que tomou conta da zona ribeirinha que destrói e devasta tudo à sua passagem até à altura dos primeiros andares das habitações. São estes os principais rastos que o rei mensageiro da morte deixou ao resolver modificar as tranquilas comemorações deste Santo dia.

Observar e escutar, dói, como dói sentir as peles a arder ou o corpo a ceder perante a força dos prédios a desabar, a rasgar os membros e a enterrar vivos tantos que vão gritando até à exaustão quando percebem que se encontram presos sem possibilidade de salvação. São muitos os que nessa condição morrem afogados pelas águas ferozes que a onda traiçoeira lhes serviu. Melhor teria sido a morte os ter levado quando a primeira queda das fachadas os tapou ainda com vida. E o azul sereno com que a manhã deste sábado de Todos os Santos acordou continua a fazer-se adivinhar por detrás das carregadas manchas negras paridas pelas dezenas de incêndios que crescem um pouco por toda a parte. Como pode Deus manter lá bem no alto a cor esquecida da pureza Celestial se nesta cidade devota o caos, a morte e a miséria continuam a ser semeados com tamanha eficiência?

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sábado, 8 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação IV

Tantos mortos, tanta gente aos pedaços, tantas casas caídas e tantas coisas boas perdidas e espalhadas pelo meio dos pedregulhos e poeiras. Vou apanhar todo o ouro e demais coisas de muito valor que consiga resgatar aos mortos e moribundos. Não vão ser só esses bandidos e assassinos que acabam com a vida de muitos feridos a levar tudo o que por aqui se encontra. Sou bem pequeno para me fazer chegar aos sítios mais escondidos das desabadas fachadas e não tenho medo da morte. Se me consegui dela fazer escapar, se de mim mostrou ter piedade e são tantos os mortos e os que aguardam por socorro, não me virá buscar agora que está tudo arrasado. Eu matar não mato, só procuro por coisas de quem já delas não precise. Coisas valiosas e raras, anéis, pendentes, colares, jóias e até gargantilhas, muitas moedas e outros valores, tudo que me seja possível transportar nestas bolsas que consegui arranjar. Não é difícil passar despercebido pelo meio desta gente desorientada. Quem nada tem, como eu, importa-se lá se o chão que mexe destrói a cidade e lhe mata os habitantes. A mim irá matar a fome por muitos e bons meses. Tenho de arranjar um local afastado e muito seguro para esconder esta riqueza. Tenho de ter cuidado com esses bandidos que por aí andam ao mesmo. Trazem facas de lâminas afiadas às quais vão dando uso, mais do que às pistolas e carabinas. Os meus produtos seriam muito bem recebidos por estes assassinos. Mais de cinquenta fugiram aproveitando as ruínas e as paredes destruídas do presídio. Corriam como lebres assustadas mas deram logo conta dos coitados que iam gritando pelos seus mortos e que ficaram logo ali tombados e sem vida. Sobreviveram aos tremores para acabarem mortos por bandidos da pior espécie. Ainda vieram atrás deles alguns guardas. Dois acabaram mortos à pedrada por seis malfeitores. Anda a cidade enlouquecida depois de destruída. As gentes bem que podiam abalar daqui para fora. A mim dava-me maior facilidade e segurança para a tarefa. Os feridos e os outros que sobreviveram andam tão atormentados, tão aparvalhados, que mal não me farão! Ainda para mais sendo tão minúsculo e franzino, quem é que dá conta da minha faina? Ninguém, e é bem melhor que assim continue. Evito olhar para os rostos das pessoas que alivio. Trazem mais de metade da cabeça à mostra. A cor do que está lá dentro é estranha. Metade é sangue e o resto é um cinzento claro pastoso. Não me mete nojo, quero lá saber! Alguns deles trazem falta de olhos e os dentes todos partidos. São muitos os corpos com cabeças desfeitas. Sei disso porque prefiro retirar os terços e crucifixos por inteiro sem lhes rebentar os frágeis aloquetes. Para tal tenho de lhes levantar as cabeças e são muitas as que encontro neste estado. Há mais jovens como eu a tentar a sua sorte no meio dos destroços. Não preciso de me preocupar pois a riqueza é tanta que chega para mais de trinta dos nossos. Se o Ratazana cá estivesse! Só nós os dois, no meio de tanta abundância. Seria a verdadeira perdição! Malvada a hora em que se lhe meteu na cabeça enfiar-se com o tio e os irmãos naquela miserável barcaça rumo ao Brasil. Mas que sorte a dele. Safou-se dos abanões, ao menos. A ruela junta à Sé ficou cheiinha de ruínas e de mortos. Os animais e as pessoas que por lá habitavam estão todos mortos por baixo das paredes desfeitas. Parecia que o bairro estava a derreter-se e a espalhar-se como areia pelo chão. Se calhar tinha morrido mais o tio e os irmãos. Sacana do Ratazana! Pudesse ele ver o tesouro que carrego aqui comigo. Se imaginasse que o Anão Maneta seria o rapaz mais rico das redondezas até lhe caíam os queixos.

A guarda de el-rei!

Andam preocupados com o quê? Será melhor fazer-me passar por morto. Esses bandidos assaltam e roubam toda a gente. Eu só tiro a quem as coisas já não dão utilidade! Melhor seria que ajudassem a apanhar os assassinos que fugiram do presídio. São tantos malfeitores agora espalhados no meio desta loucura que muito será o trabalho que terá a guarda de realizar. Vão a caminho do Rossio. O hospital está em chamas. Deve ser um espectáculo digno de ser visto. Os pais da Fernandinha tinham ido para lá trabalhar nas limpezas com os padres. Se calhar estão mortos ou queimados. Estavam sempre a chamar-me nomes e a cuspirem-me na cara, os nojentos. A Fernandinha merecia melhor sorte. Vou ver se ela lá está. Se não morreu, a primeira coisa que deve fazer ao saber do incêndio no hospital é querer saber dos pais. Se estiverem mortos tomo conta dela. É muito o dinheiro e a riqueza que carrego. Depois de a procurar por lá, tenho de arranjar maneira de esconder este peso. Com tanto terço e crucifixo que trago aqui dentro, já devo estar bem abençoado.

Mal consigo avançar com tantas pedras tombadas e mortos espalhados pelo chão. Tanto choro e tanta reza juntos fazem uma barulheira maior que a do abalo da terra. Chora-se ao ritmo das orações salgadas. Este padre parece doido a chamar nomes ao Senhor. Anda a dar estaladas e a distribuir bofetões aos que pedem a clemência de Deus. E agora até a si mesmo dá sopapos. O mundo ficou doente com tanta destruição. Quero lá saber, quero lá saber! E as pessoas que correm por todos os lados, chamam todos os nomes que existem, desfazem e retirem alguns pedregulhos para arrancarem outros que se encontram no meio das ruas entupidas. Desaba o convento do Carmo lá no alto! É um estrondo valente que se faz sentir junto com os berros e mais berros das gentes que por lá se devem ter finado.

A Fernandinha tem de estar viva, tem de ser!

Começa-me a pesar este peso todo, mas nem pensar em aliviar as bolsas, isso é que não. Era só o que faltava. Subir e descer tanto monte de pedregulhos e de madeiras rachadas cansa. O céu está escuro do fumo dos incêndios e custa mais ouvir os gritos dos queimados dos que se lamentam no meio das paredes destruídas. Os cheiros também são novos, intensos e apodrecidos.

O que me quer agora aquele soldado de el-rei? Se aí estás preso assim ficarás, tenho bem mais em que pensar. Pede ajuda a quem te possa socorrer que eu estou à procura da Fernandinha. Um homem tão grande a chorar desta maneira, nunca vi! E o povo não pára de correr! As suas pernas trazem-nos ligeiros nesta direcção, mas porquê?

Uma parede de água? Mas o que é lá isso? O que estão para ali todos a gritar! Uma parede de água, fujam que uma parede de água sobe o rio para nos afogar? Vai lá lembrar aos demónios do céu mais esta maluqueira!

E nem que os ruídos de há pouco se juntassem todos novamente conseguiam alcançar em tamanho os da montanha de água que veio para nos matar. Não tenho hipótese de fuga. A onda arrasta tudo à sua frente, uma lixeira sobe as ruas destruídas por cima do rio que engole vivos, mortos, e cresce como um gigante na minha direcção. Vou tentar apanhar aquele imenso bocado de madeira e agarrar-me a ele com todas as forças que me restam. Largar o peso do meu tesouro está fora de questão, nem que me afogue e me leve consigo para o meio deste oceano que engole as ruas destruídas da cidade!

Subi a custo para cima do muito entulho que é arrastado pelo mar que entra pela cidade. Alguns seguem como eu, carregados em jangadas descobertas no meio de tantos destroços. Muitos são os que não sabem nadar e desaparecem rapidamente debaixo do tapete de água. Perdi um dos sacos nesta aventura, mas se não o largasse teria sido impossível apanhar a boleia deste tapete salvador. Olho para os lados e em alguns dos edifícios que se mantém de pé a água e o lixo rebentam portas e janelas para lá dos primeiros pisos. A água tem uma força gigantesca e continua a arrastar e a destruir tudo aquilo que apanha pelo caminho. Se não fosse pela paisagem destruída, pelos gritos e pelo medo instalado e que também a mim se colou, gostaria de voltar a viver esta experiência outra vez. Não sei se este pedaço de madeira alongada vai resistir por muito mais tempo. O que me vai valendo é a minha pequena figura. Por uma vez na minha vida miserável, aquilo que sempre serviu de gozo e de tanta troça é aqui uma vantagem. Sou leve e muito ligeiro. Consigo dar bom rumo a esta ruinosa barcaça que me transporta pelo meio da confusão. Alguém muito importante se deve ter portado mal para que estas forças da destruição tenham sido encomendadas destruir a cidade. Eu faço como os outros, quando os matam na praça pública. Vejo o espectáculo e sigo o meu caminho com a alma mais leve.

Será isto o fim do mundo? Se for, não vale a pena tentar perceber quais as palavras e as orações em falta pois tudo acabará dentro de instantes. Quero apenas descobrir a minha Fernanda antes que tudo se desmorone e transforme em pó, lama e lembrança.

Apenas peço isso!

Apenas peço isso e nada mais.

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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação III


Tenho de me alinhar antes de dar o aviso. O dia começou alterado nesta casa, e ainda para mais hoje, com tanto que há para fazer. O senhor Lefebvre nem imagina a dificuldade que vou ter em convencer toda a criadagem a abalar, sem motivo aparente, para fora da cidade. Vai ser o bom e o bonito! A Eulália não vai aceitar bem a ideia, ainda para mais sem que o senhor me tenha dito qual o verdadeiro motivo para nos apressarmos nesta fuga. Os primeiros raios de sol dizem-me que estou muito atrasada. Devemos sair daqui rapidamente. O que será que de tão misterioso e grave poderá estar para acontecer? Não admira o espanto da Eulália e de Simplício. As outras duas tontas nem sabem bem o que pensar. As suas cabecinhas são muito lerdas e a realidade acaba sempre por se impor às tolinhas. Se lhes disser que os talhantes as esperam para as acompanhar à missa dos finados, lá na entrada norte de Lisboa, arrancarão desmioladas sem dar conta da patranha. Qualquer disparate as fará sair de casa sem problema. O mais complicado é fazer com que a nossa boa Eulália daqui se arrede com o marido e bem depressinha. Melhor mesmo é arrancarmos os três o quanto antes, ir na sua companhia, mesmo sabendo que a velhota não gosta nada de mim, mas do mal, o menos. E se morrermos todos, como será? Sim, morrermos, pois essas foram as palavras mais assustadoras que o senhor Lefebvre usou. Não terá sido por qualquer estranho prazer que me terá dado esta instrução. Pela casa fazem-se escutar os passos apressados dos médicos que procuram as montadas nas cavalariças. Mas que situação mais aflitiva. Nunca antes vi o gordinho assim tão agitado. Não nos viram mas a sua saída foi visível e bem notada por muitos dos que já se deslocam para as igrejas, catedrais, basílicas e conventos. Altos desaforos e palavras muito desagradáveis foram bradadas pelos muitos que ali se encontram e que quase foram derrubados pelos ilustres cavaleiros. Muitas orações atravessam a boca do casal que acompanho. Súplicas e mais rezas da Eulália, pois todos estes estranhos comportamentos a si muito medo provocaram. O velhinho Simplício ouve muito mal. Dificilmente os seus olhos gastos olham para este mundo com a mesma esperança da filha. Já nem está por perto. A tola da Irene levou-a apressadamente consigo para procurar os talhantes no lugar que lhes dei como reservado. Se mal vier a acontecer, as duas terão ganho salvação. Foi tal a rapidez com que as pernas as levaram daqui para fora atrás da história dos talhantes, que até me dá pena a cabecinha oca da Laurindinha.

Andamos ao contrário do povo! Torna-se muito complicado fazer assim o trajecto. Orações e muita celebração religiosa levam a multidão para os locais de culto. A maioria deles situa-se nos locais opostos àquele para onde tentamos caminhar. Por muito que tente e que sinta, não consigo imaginar o que poderá estar para acontecer. O dia está bonito, a temperatura amena e quase primaveril, o povo passeia feliz neste dia. Mas que mal estará para vir ao mundo que tanto atrapalhou o meu sensato senhor Lefebvre. Subimos em direcção ao ponto mais alto da colina que dá para lá do castelo. A visão que daqui temos da cidade é seguramente das mais perfeitas. O Tejo continua a sorrir-me, agora com maior intensidade. São cada vez em maior número os barcos que chegam e nos visitam. Adoro ver o reflexo das suas velas e mastros nas águas do rio. Parei por alguns momentos, os suficientes para ter perdido de vista a Eulália e o marido. Não faz mal, deixá-los ir. Se tudo correr como acredito, não se passará nada e até ao final do dia estaremos todos de regresso a casa.

*

Não consigo ver nada que possa vir a causar situação de perigo ou, como o gordinho de forma tão alterada me disse, tantas mortes que o inferno esfregará as mãos de contentamento. O que terá acontecido ao senhor médico para nos espavorir com estas notícias atormentadas? Lá em baixo as pessoas andam atarefadas mas felizes. Tentam chegar a tempo às igrejas apinhadas. Hoje o dia acordou com muito ânimo e a todos parece abençoar. São tantas as famílias, tantas as crianças que acompanham os pais e demais adultos. Não fazia ideia que na cidade se achassem quase tantas crianças como adultos. Muitas param ou ficam na praça a apreciar o espectáculo das fragatas reais e de muitos outros navios fundeados ao largo do Tejo. A Eulália e o Simplício ficaram definitivamente fora de vista. Fiquei aqui especada uma pequena eternidade a observar o cenário, mas não consegui resistir. Vou continuar a marcha para longe daqui, tal como me foi dito.
Mas, o que é isto? O que se passa? As pernas e o corpo tremem com tanto vigor que tenho de me ajoelhar para não tombar. É como se estivesse febril. Cravo os dedos das mãos com firmeza no solo para tentar equilibrar o corpo. E que barulho ensurdecedor é este que rebenta das entranhas do chão como uma imensa trovoada? Tento levantar-me para ver o que se passa lá por baixo, nas apinhadas ruas de Lisboa, mas o meu corpo não consegue estabilizar e tombo com toda a facilidade para o meio do caminho que se agita e avança como uma carruagem furiosa. Meu Deus, que força do destino é esta que nos visita neste Santo dia? Os barulhos são ensurdecedores. Nem cem trovões de outras tantas trovoadas a rebentar ao mesmo tempo conseguiriam atingir a força dos que aqui estou a ouvir. O mundo vai acabar! As paredes das casa, das igrejas, dos palácios estão todas a desabar, a cair em cima dos desgraçados que seguiam felizes o seu caminho. Onde estar Lefebvre, Deus meu?! A cidade transformou-se num verdadeiro inferno. Não consigo manter-me de pé. Dois ou três passinhos e caio logo como uma criança que experimenta os primeiros passos. Escuto os gritos das pessoas amarguradas que ficam por debaixo das muralhas, das paredes e dos telhados que lhes caem em cima sem misericórdia. É o inferno que brota dos pavimentos e que engole tudo sem critério. O chão não pára de tremer e os estremecimentos crescem em violência. Será isto possível? A cidade será arrasada pelas forças do demónio. Muitos terão sido os pecados cometidos para que estes horrores nos tenham sido encomendados. Os tremores continuam a lançar-me para o chão. Nem consigo estar de joelhos. Deito-me como uma crente em oração, com os ouvidos tapados pelas mãos e os olhos bem cerrados para me ausentar por momentos da tragédia. É impossível! O ruído sente-se por todo o meu corpo. É um monstro que me cobre da cabeça aos pés, abana-me com tanta força que as minhas lágrimas já não são de desespero, são de dor. Sou pisada por uns quantos que correm desorientados em direcção ao centro dos infernos, gritando nomes e esbracejando como loucos na procura dos seus.
Este momento não está a acontecer. Nas minhas ideias desligaram as luzes da razão e a escuridão lançou-me para este pesadelo que julgo estar a viver mas que, na realidade, só se passa na minha enegrecida imaginação. São os meus pecados a castigarem-me os sentidos. Terei tantos por confessar que o Senhor lançou por sobre mim a sua fúria. Uma fortíssima dor rasga-me o peito e aflige-me o corpo num frenesi atormentado. Este é o maior de todos os pesadelos, é sentido como se fosse real, como se estivesse mesmo a acontecer. É maior que todos os que já me foram servidos nas noites mal dormidas da minha juventude.
São cada vez mais os que me pisam ao correr desvairados na procura dos seus. Caem e voltam a levantar-se, correm desorientados, tentam combater a agitação do chão que continua a bailar esta dança mórbida. Alguns mexem-me para verificar se não estarei morta, ferida, mas não tenho coragem para afastar as mãos dos ouvidos ou sequer abrir os olhos. Desejo que tudo acabe como começou. Ao ficar assim nesta escuridão a que me impus, anseio que tudo possa ser apenas fruto da minha atormentada fantasia, nada mais. Rezar aos Céus, prometer cumprir com todas as obrigações de alma cristã, voltar a percorrer os seus caminhos. Será por força deste meu sentir que o pesadelo acabará por se desfazer, devolvendo-me o dia antes de me ter sido roubado? Espero que sim, mas o chão continua a tremer para todos os lados não dando sinais de afrouxamento.
Os trovões de mais de cem trovoadas continuam a soltar-se das mais profundas cavernas da terra. Atacam os lisboetas por todas as maneiras. O cheiro a fumo faz-se também sentir. O ar torna-se pesado, denso, mistura-se o odor da morte com o da pedra e da madeira queimada, com o da poeira e com o do sangue dos muitos feridos que saem aflitos das habitações destroçadas. Por aqui não tombam as paredes como lá por baixo. O chão estremece, as casas ficam rasgadas nas fachadas mas não se desmoronam com a facilidade das do centro da cidade. A colina fornece alguma protecção a estes habitantes. Muitos deles continuam a sua correria desgovernada pelas vielas abaixo, gritam como almas danadas, esbracejam, choram, rezam e imploram por uma bonança sagrada. E por estes momentos de loucura, por estas rezas e súplicas, a terra parece dar ouvidos à dor das gentes, abrandando a sua medonha efervescência.
Dou algum descanso às lágrimas. Levanto-me com as pernas trementes, como se ainda o chão lhes desse o movimento. Abro os olhos na direcção do Tejo, na direcção das ruínas, e não consigo controlar a minha dor. As lágrimas voltam a inundar-me a vista e os soluços saem do meu peito em penosa cadência. Como é possível o panorama da cidade do Tejo estar completamente aniquilado. As mais altas torres, o convento do Carmo que do outro lado da cidade se abate com um estrondo feroz, a zona ribeirinha devastada e destruída, o palácio, as casas e as ruas que não se conseguem distinguir no meio de tanto pó, de tanta pedra abatida. O povo caminha desorientado no meio da destruição. Consigo perceber daqui o largo junto ao hospital, que também tem uma espessa nuvem negra a sair da sua igreja. Há muita gente apinhada no meio do Rossio, e mais vão chegando, aumentando em muito o número daqueles que por lá se encontravam. Espero que Lefebvre esteja vivo, que seja um daqueles muitos que lá se encontram.
Barulho? Mas pode lá ser uma coisa destas! Rebentaram novamente das entranhas do chão os trovões dos demónios. No inferno juraram terminar com a raça dos homens. Atiro-me novamente para o chão, ainda mal refeita da terrível sensação de há momentos e eis que tudo se repete com redobrada violência. Os gritos são agora ainda mais audíveis. As mãos que me tapam os ouvidos pouca protecção me fornecem e sinto o corpo a ser atirado para todos os lados com grande facilidade.
Vai mesmo acabar. O mundo vai hoje ter um fim!

Escondo-me atrás das mãos, atrás dos barulhos penetrantes, atrás do medo e das rezas que vou cantando baixinho, atrás dos olhos cerrados que procuram a cidade de ontem, a cidade do Verão passado, a cidade que já não pertence a este tempo que a transforma. Toda eu tremo. As vidas são arrecadadas, vão sendo apagadas à medida que os abalos arrasam os poucos edifícios que resistem às sacudidelas do mundo. Entendo isto pelos inacreditáveis ruídos que crescem como um gigante à minha volta. Nada nem ninguém sairá poupado destes fortes estremeções. E um abismo suplicante corre do centro das muralhas à procura de uma explicação que tarda em surgir. É impossível isto estar a acontecer! Não podem existem forças com uma tão grande capacidade de destruição, muito menos a surgirem assim do nada, sem nenhum aviso. O médico amigo de Lefebvre tem estranhos conhecimentos. Quem lhe deu notícia destes horrores? Terá sido o próprio Demónio? A julgar pela dimensão dos poderes, será ele próprio servo dos infernos. Mas se assim fosse, qual a razão que o terá levado a dar conta deste desastre ao senhor Lefebvre?
Vamos perecer! Depressa nos juntaremos aos defuntos que lembramos neste dia.
A terra não dá tréguas! Não sou capaz de pensar. Um sabor com travo a fel inunda-me a garganta. Tusso de maneira nervosa e incontrolável, como se fosse o meu peito sair pela boca fora. É a alma que me destrói a esperança.
Vejo a figura do meu gordinho senhor Lefebvre deitada nos lençóis de mel. Foi mesmo agora! Como é possível que em tão curto espaço de tempo as nossas vidas desapareçam no centro desta imensa náusea?
Sinto-me desfalecer. Cada vez mais gente enlouquecida me pisa e violenta o corpo ao correr sem destino em todas as direcções. É um pavor tremendo este que tomou conta dos habitantes desta Lisboa destroçada. Não encontro forças para reagir. Aguardo com a dor marcada em tantas partes do meu corpo por este fim cruel que me estava consagrado.
Isto não é um sonho nem um pavoroso pesadelo!
É a realidade impiedosa que se abate sobre todos os habitantes deste mundo.

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