quarta-feira, 21 de outubro de 2009

FERNANDINHA


Fugir para bem longe. Fernanda tem as mãos geladas. Não resistiu à minha vontade e afastamo-nos agora para longe da grande praça. Seguimos em direcção ao norte da cidade. Não olho para trás, não procuro ninguém pois já tenho quem queria. São muitos os que fogem como nós. O medo tomou conta de todos e os que sobreviveram às ruínas afastam-se do centro da cidade, afastam-se do cheiro intenso da morte e da loucura. Fernandinha ainda não falou. A sua mão continua fria, os seus dedos agarram os meus com energia, como quem pede neste aperto que tudo não passe de um imenso pesadelo. Quanto mais me agarra, mais lágrimas silenciosas correm pelo seu rosto, mais o seu olhar se fixa nas cercanias distantes da cidade, naqueles pequenos montes que forram a paisagem junto ao céu neste dia negro e tão azul. Não imagina o que o meu coração sentiu. Este massacre colou a sua mão à minha, o meu coração já estava entregue ao seu, a sua companhia foi-me oferecida desta forma. Mal sabe o quanto eu digo bem desta tragédia.

*

Para onde segue o meu corpo? Para onde me levam as minhas pernas trementes? Devo voltar imediatamente para trás, para onde as fachadas ardentes escondem os meus pais. Não sei que medo tomou conta da minha voz, das minhas forças, para seguir desta forma abandonada um caminho que não desejo. Correr de volta até à grande praça, correr até que desapareçam de vez estes ruídos, estas sombras, estes cheiros, até que eu desapareça e regresse sã e salva para um qualquer outro tempo ou outro lugar. Desejo que uma imensa mão surja e me transporte rapidamente daqui para fora. Corro desta maneira desorientada para não ter de perceber os rostos espalhados pelo chão, o sangue que corre por todos os espaços, os corpos dos penitentes que rezam desesperados a olhar na direcção de um Deus desaparecido, de um Deus que desgraçou a nossa cidade, o nosso mundo, que nos serviu a morte e o desespero com as forças incompreensíveis do próprio Inferno. Corro descontrolada. Trago os pés em sangue e não os sinto, o corpo não me pertence, as pernas avançam desgovernadas por entre a miséria e a ruína. Se alguma dor pudesse atingir o meu corpo nesta correria desenfreada que me leva de volta ao hospital, seria mais feliz. Corro como se corresse num sonho, para dele fugir, para dele tentar desesperadamente voltar a acordar. Não entendo porque me deixei arrastar tão facilmente para fora daquele cenário. Um rosto sujo e conhecido olhou para mim, um rosto familiar que me trouxe os pensamentos de volta. Afinal não se trata de um imenso pesadelo. As sensações dão-me dores de cabeça e dou por mim nesta corrida sem destino aparente, sem qualquer vontade de terminar. Já não procuro a praça, o hospital, já não procuro nada, já não procuro, apenas corro. Fujo assim em direcção ao longe, em direcção a uma outra história que não esta. Em direcção ao mar não posso pois é o mar que corre em direcção a nós, em direcção a casa não posso pois nada dela se manteve em pé, em direcção ao céu não posso pois não consigo voar e a sua cor está manchada com as negras cores do fumo, em direcção às colinas não posso pois todos os caminhos estão impedidos ou destroçados, em direcção ao passado recente não posso pois o dia de ontem transformou-se e vestiu-se com as negras cores da morte. Corro por correr, até que um destino, um som de um sino ou uma luz me possa dar curso para a viagem. Enquanto isso não acontecer, enquanto continuar a não sentir as minhas pernas e os meus pés, não darei travão a esta corrida.

Não mais irei parar! Alguém vem atrás de mim, alguém me chama, não quero voltar as costas, não vou voltar. Faço por ignorar os espaços que percorro nesta corrida. As mãos que me transportaram há instantes para longe das chamas que engoliam o hospital desejam-me de volta. Não quero voltar, não quero voltar a ter de olhar para rostos conhecidos. Não desejo ser reconhecida, quero que as lembranças desapareçam como estes edifícios desmoronados, como estas ruas, como estas igrejas, como esta cidade. Continuo nesta correria desenfreada e sinto um imenso prazer ao avançar e saltar pelo meio de toda esta destruição, como se não fizesse ela parte de mim, como se estas personagens e este cenário fossem feitos de palha ou do mesmo material com que constroem as nuvens lá no céu. A imensa praça chama violentamente por mim. Essa praça onde tantos estão deitados, onde outros tantos se amontoam vencidos pela tragédia, onde outros ainda fornecem amparo aos mais necessitados, onde as chamas crescem ao sabor do vento que se levanta mais forte à medida que o dia avança, essa praça chama por mim. Corro para lá com todas as minhas forças, corro para lá sem saber porquê, e todas as cores da cidade ficam cinzentas, negras, e o próprio vermelho derramado pelos corpos fica negro, tão negro e brilhante que a intensidade desse brilho sobressai entre todos os outros negros que agora visitam os meus olhos. Só consigo pensar em correr, é tudo tão diferente, tudo tão diferente e tão igual, apesar de tudo, ao que já era. Esta sensação de vingança consumada não me abandona, diz-me que tudo isto aconteceu por minha vontade. Esta estranha sensação de que as minhas ideias obscuras ganharam tanta força, tanta intensidade, foram por mim repetidas tantas e tantas vezes, que acabaram por avançar pelo espesso manto que separa a vontade da razão. E agora corro por cima das consequências do meu pedido concedido, com surpresa e admiração e medo e um incontrolável sentimento de orgulho e vaidade. Corro, fito as minhas mãos e vejo apenas um cinza claro que contrasta com algumas gotas brilhantes de um negro húmido que mancha aqui e além os dedos magros. Ao fazê-lo tropeço num corpo abandonado e caio com violência no chão que se entende para lá deste homem. Deixo-me aqui ficar, só por uns breves instantes. Uma gargalhada descontrolada sai-me da garganta sem que lhe consiga dar travão. O homem está sentado no chão com mais uns dez ou doze companheiros, todos nus, gritando e esbracejando alegremente, apontando para tudo aquilo que arde ou desaba com uma estranha alegria no olhar. E senhores médicos mui honrados aqui estão reunidos, escaparam da derrocada e do incêndio que consome o hospital. Não espero ver os meus pais a sair com vida daquele inferno, a humanidade e o universo mudaram para todo o sempre e a sua sobrevivência seria um prolongamento indesejado desse passado. As minhas preces e os meus sonhos evocaram o medo e o espanto, contactaram com as forças mais negras e escondidas da minha alma para se transformam assim, desta forma, em realidade. Escolheram esta forma incompreensível de me fazer a vontade, esta poderosa e inimaginável forma de destruição. Sinto-me finalmente em casa no meio desta poeira cinzenta, destas linhas negras ensanguentadas que me orientam o caminho, e estes misteriosos homens desnudados dirigem para mim, alinham as suas mãos com as minhas, levantam-me do chão com todos os cuidados. Estou em pé no mesmo exacto local de há pouco, onde em silêncio olhava com a maior admiração para esta obra que ajudei a criar. O peso que da improvável força dos meus desejos e das minhas preces germinou esmaga-me o corpo e as ideias. Continuo sem sentir os pés e ao tentar avançar novamente feita louca pelo meio do massacre uma mão forte trava-me as vontades. Alguns cavalos mais nervosos atropelam feridos e correm sem destino, tal e qual a vontade que sinto em os perseguir. Contudo, não tivesse essa mão forte travado esta minha vontade, teria sido atirada ao chão e pisada pelos animais que fogem desorganizados, atropelando e saltando por cima de tudo e de todos. Surgem de todas as ruas e passam na grande praça do Rossio em galopes estranhos e muito enérgicos. Poucos, muito poucos, trazem cavaleiros na garupa. Tudo mudou, definitivamente nada permanece igual ao que já foi. O dono desta mão pertence a um médico. A sua voz e as suas palavras tentam acalmar-me. Tenho medo de ficar sozinha, e tenho medo desta multidão, muito medo destes estranhos que não sabem que fui eu a causadora de tanto mal. E se descobrem, se as mesmas forças que me deram ouvidos aos sonhos e vontades descontroladas lhes disser que rezei para que tudo isto pudesse acontecer? Vou ficar quieta mais uns instantes por aqui. Afinal, estou órfã, e muitos mais estarão por via da força das minhas palavras mudas. Para fugir à morte, se for verdade que tudo isto está mesmo a acontecer, fico abrigada na sombra das doces palavras deste homem que me procura proteger. Os caminhos percorridos e os corpos pisados na minha desenfreada correria, esses, continuam negros e cinzentos como toda a restante paisagem da minha cidade destruída.

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