terça-feira, 6 de outubro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação X


Será possível? Não se consegue avançar pelo meio de tanta destruição. Corpos aos milhares, como milhares são os que caminham sem rumo pelo meio dos detritos. Luto desesperada contra a minha vontade de chegar ao Rossio, lá onde o hospital está em chamas, lá para onde correu o meu senhor Lefebvre. É praticamente impossível. As ruas e calçadas estão arruinadas, os escombros cobrem tudo, os edifícios que não estão em chamas ameaçam ruir, as pessoas estão desesperadas, alguns aproveitam-se dos mortos e dos feridos para lhes retirarem os pertences. Por aqui não consigo chegar lá abaixo, será muitíssimo complicado conseguir essa façanha. Arriscarei a vida se insistir. A cidade ficou, para além de destruída, completamente louca e desorientada. A acreditar nas palavras do senhor médico, a dar razão às razões de Lefebvre, tenho de caminhar até à casa de Santarém para onde nos deu ordem de abalada. Desde que as mudanças foram iniciadas nunca mais houve descanso. Em Santarém tudo é mais tranquilo. Se o senhor Lefebvre me mandasse lá ficar, não me importaria. Não consigo encontrar doçura na ordem dada de ficar por lá à sua espera. Não sei sequer se estará vivo, se sobreviveu a toda esta destruição. As pernas fogem-me na direcção da desgraça mas a minha cabeça permanece sensata e pensa ajuizadamente sobre o que fazer a seguir. Se as ordens foram dadas para nos proteger, seria cruel que o destino tivesse transportado nas asas misteriosas de um sonho esta terrível notícia para de nada ela servir. Seguirei rumo a Santarém, seguirei até lá e aguardarei pela chegada de Lefebvre. Se estou viva, se todos os que serviam nesta casa já se encontram a salvo, se não fazemos parte desta imensa quantidade de cadáveres que se encontra espalhada por toda a cidade, então o gordinho também está vivo!

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- Desperta Fernandinha, desperta, acorda. Pareces uma estátua assim parada feita tola a olhar para o hospital. Olha só para tudo o que aqui trago comigo. São tantas as riquezas, tantas maravilhas, tanto metal, que te posso transformar numa rainha. E não fosse a onda ter feito desaparecer um saco no passeio, não fosse ela ter crescido mais e com uma força maior do que a esperada, e outro tanto te teria para oferecer. Estás a ouvir-me Fernanda? Não me digas que estás à espera dos teus pais?! O hospital está todo destruído e o que ficou em pé arde como todas as outras casas que não ruíram com a força dos abalos. Temos de sair daqui depressa Fernanda. Anda, vem comigo e nada te faltará. Doidos e brutos como são, eram bem capazes de te rebentar com pancada se tivessem saído de lá com vida. Por mim, que ardam nessas fogueiras bem lentamente, para que todo o mal que te fizeram lhes passe devagarinho pelos corpos. Anda, vem comigo, tratarei de ti como mais ninguém no mundo alguma vez te tratará. Temos de sair desta cidade destruída bem depressa. As pessoas começam a ficar cada vez mais assustadas e enlouquecidas. Sabe-se lá que mais ainda pode vir a acontecer. O que consegui juntar dá para todas as nossas necessidades, pelo menos para os próximos dois ou três anos. Vais ver que tudo se irá resolver. Afinal de contas os teus pais só te espancavam, tratavam-te como não se trata um animal. Deixa-os ficar, mesmo que façam parte desses últimos que se atiram pelas escadas do hospital abaixo, mesmo que façam parte desses que não se levantam depois do acidentado trambolhão, deixá-los para aí ficar Fernanda, deixá-los para aí ficar.

Mas porque se mantém ela assim tão ausente? Não consigo arrancar-lhe um movimento. Está tal e qual uma estátua. As chamas que já saem dos telhados destruídos do hospital transformaram a minha Fernanda numa estátua de carne e osso. Os seus belos olhos castanhos não pestanejam, o seu rosto não se altera em feições, mantém-se completamente firme numa estranha e sublime ausência. Apenas o seu pequeno peito vai dando sinais de vida, subindo e descendo ao ritmo do crepitar das chamas, das constantes vozes que vão chamando pelos seus em direcção ao céu, das quedas atabalhoadas de todos aqueles que por aqui vão andando, correndo desorientados, avançando em direcção ao que já não é, procurando por razões onde elas não podem ser encontradas. Parece tal e qual uma santa, e nem a pele suja e as vestes gastas e cansadas lhe diminuem a luminosidade que parece sair de si assim tão firme, tão distante, tão perfeita. A minha vontade em a levar para bem longe daqui serenou por uns instantes. Este último minuto trouxe-me uma Fernanda um pouco mais calma. Os seus grandes olhos já não estão tão fixos e distantes. Mantém toda a sua atenção no edifício em chamas, mas já olhou para mim, uma única vez, é verdade, mas o pequeno sorriso que desenhou nos lábios ao perceber a minha presença aqueceu-me a alma e o coração. A Fernanda é a mais bela rapariga da cidade, e nada nem ninguém, nos poderá alguma vez vir a separar. Dou por mim a agradecer a estes deuses destruidores o favor que me fizeram. Do meio desta desgraça, os pais da Fernanda parece não terem tido a sorte de escapar dali com vida. Essa é uma sorte que caiu dos céus, que saiu do chão com toda a violência, e que me dá a possibilidade de ficar junto com a Fernanda para sempre. Somos os dois filhos da mesma desgraça, uma que nos deu estes caminhos e não outros para percorrer. Quem me dera poder ter outra natureza que não esta. Sempre me desprezaram, não só pela minha fealdade como pelo meu tamanho, mas acima de tudo, pela minha incompreensível esperteza. Pequeno larápio, és uma peste… , diziam, sempre a dominarem as vontades de me cuspirem na cara ou de pontapearem o pequeno ser que sempre fui. Só a beleza de Fernanda a chamar por mim, desde cedo, desde que os seus imensos olhos castanhos e a sua pele de princesa tocaram na minha alma. Pego na sua mão e puxo-a daqui para fora. Correr é tudo o que importa. Correr muito e bem depressa para a zona mais a norte da cidade, para lá de toda esta confusão, de todos estes mortos, de toda a matança escondida que alguns miseráveis assassinos operam ao desbarato aos mais frágeis sobreviventes. É um pecado, um mal que não se transfigura mais.

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