quarta-feira, 7 de outubro de 2009

LEFEBVRE


As sobras desta cidade serão poucas. Alguém no reino terá de conseguir reunir forças e muitos braços para ajudar a amenizar as chamas deste inferno. Mas quem vejo? Lefebvre, meu bom amigo, ei-lo que vem saindo das sobras do hospital. Que figura, verdadeiramente notável tudo aquilo que conseguiu fazer! Os últimos sobreviventes seguramente lhe devem a vida. Muitas foram as almas que aqui se nos vieram juntar graças à sua coragem e estoicismo. E os meus receios, a minha inquietude era mais que uma lembrança escondida nas minhas recordações. A estranha forma como essas imagens, como esses indicadores me são dados a conhecer, muito, muito raramente, não se conseguem explicar. A realidade está-lhes entranhada com um vigor tão intenso, tão profundo, que se funde com eles, com calor, com muito frio, com todos os cheiros e sabores que lhes pertencem. Se delas desse conhecimento, se delas me atrevesse a falar, não mais seria quem sou. Mas as de hoje foram, de longe, as mais incontroláveis, as mais fortes e perturbadoras. Razão tinha o meu receio em afastar de mim a nobreza e a dúvida, e delas dar notícia ao bom Lefebvre. Quantos terão sido poupados do desastre? Quantos terão sido afastados da morte cruel que atingiu Lisboa com tamanha crueldade? E nós, salvos para seguir um caminho que se afigura terrível e que exigirá toda a perícia, toda a dedicação e toda a nossa ciência. Tenho de abraçar o amigo, tenho de lhe sentir o corpo e lhe dar conhecimento da minha imensa alegria. O aviso não provocou o seu desaparecimento, as minhas palavras avisaram-nos e arrastaram-nos para este dia com uma estranha e incompreensível exactidão. Ao encontrar os seus olhos, ao ver aqui neste instante o rosto do amigo, o tempo parou. A intensidade do momento ficará eternizada para sempre nas minhas lembranças. Cansado, oprimido, de vestes rasgadas, respiração ofegante, os braços ensanguentados, os cabelos queimados e patinados de cinza e de negrume, um corpo imenso vergado ao peso da missão, mãos assentes nos joelhos e cabeça erguida a olhar para mim como um feroz animal selvagem acabado de sair de uma contenda. E os seus olhos azuis, a luz intensa que sai dos seus imensos olhos azuis, a expressão de alegria, de intensa satisfação, de sentimento de ter cumprido a sua parte nesta estranha missão, essa expressão, jamais conseguirei fazer desaparecer de mim, por todos os anos que dure a minha vida.~

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