sábado, 8 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação IV

Tantos mortos, tanta gente aos pedaços, tantas casas caídas e tantas coisas boas perdidas e espalhadas pelo meio dos pedregulhos e poeiras. Vou apanhar todo o ouro e demais coisas de muito valor que consiga resgatar aos mortos e moribundos. Não vão ser só esses bandidos e assassinos que acabam com a vida de muitos feridos a levar tudo o que por aqui se encontra. Sou bem pequeno para me fazer chegar aos sítios mais escondidos das desabadas fachadas e não tenho medo da morte. Se me consegui dela fazer escapar, se de mim mostrou ter piedade e são tantos os mortos e os que aguardam por socorro, não me virá buscar agora que está tudo arrasado. Eu matar não mato, só procuro por coisas de quem já delas não precise. Coisas valiosas e raras, anéis, pendentes, colares, jóias e até gargantilhas, muitas moedas e outros valores, tudo que me seja possível transportar nestas bolsas que consegui arranjar. Não é difícil passar despercebido pelo meio desta gente desorientada. Quem nada tem, como eu, importa-se lá se o chão que mexe destrói a cidade e lhe mata os habitantes. A mim irá matar a fome por muitos e bons meses. Tenho de arranjar um local afastado e muito seguro para esconder esta riqueza. Tenho de ter cuidado com esses bandidos que por aí andam ao mesmo. Trazem facas de lâminas afiadas às quais vão dando uso, mais do que às pistolas e carabinas. Os meus produtos seriam muito bem recebidos por estes assassinos. Mais de cinquenta fugiram aproveitando as ruínas e as paredes destruídas do presídio. Corriam como lebres assustadas mas deram logo conta dos coitados que iam gritando pelos seus mortos e que ficaram logo ali tombados e sem vida. Sobreviveram aos tremores para acabarem mortos por bandidos da pior espécie. Ainda vieram atrás deles alguns guardas. Dois acabaram mortos à pedrada por seis malfeitores. Anda a cidade enlouquecida depois de destruída. As gentes bem que podiam abalar daqui para fora. A mim dava-me maior facilidade e segurança para a tarefa. Os feridos e os outros que sobreviveram andam tão atormentados, tão aparvalhados, que mal não me farão! Ainda para mais sendo tão minúsculo e franzino, quem é que dá conta da minha faina? Ninguém, e é bem melhor que assim continue. Evito olhar para os rostos das pessoas que alivio. Trazem mais de metade da cabeça à mostra. A cor do que está lá dentro é estranha. Metade é sangue e o resto é um cinzento claro pastoso. Não me mete nojo, quero lá saber! Alguns deles trazem falta de olhos e os dentes todos partidos. São muitos os corpos com cabeças desfeitas. Sei disso porque prefiro retirar os terços e crucifixos por inteiro sem lhes rebentar os frágeis aloquetes. Para tal tenho de lhes levantar as cabeças e são muitas as que encontro neste estado. Há mais jovens como eu a tentar a sua sorte no meio dos destroços. Não preciso de me preocupar pois a riqueza é tanta que chega para mais de trinta dos nossos. Se o Ratazana cá estivesse! Só nós os dois, no meio de tanta abundância. Seria a verdadeira perdição! Malvada a hora em que se lhe meteu na cabeça enfiar-se com o tio e os irmãos naquela miserável barcaça rumo ao Brasil. Mas que sorte a dele. Safou-se dos abanões, ao menos. A ruela junta à Sé ficou cheiinha de ruínas e de mortos. Os animais e as pessoas que por lá habitavam estão todos mortos por baixo das paredes desfeitas. Parecia que o bairro estava a derreter-se e a espalhar-se como areia pelo chão. Se calhar tinha morrido mais o tio e os irmãos. Sacana do Ratazana! Pudesse ele ver o tesouro que carrego aqui comigo. Se imaginasse que o Anão Maneta seria o rapaz mais rico das redondezas até lhe caíam os queixos.

A guarda de el-rei!

Andam preocupados com o quê? Será melhor fazer-me passar por morto. Esses bandidos assaltam e roubam toda a gente. Eu só tiro a quem as coisas já não dão utilidade! Melhor seria que ajudassem a apanhar os assassinos que fugiram do presídio. São tantos malfeitores agora espalhados no meio desta loucura que muito será o trabalho que terá a guarda de realizar. Vão a caminho do Rossio. O hospital está em chamas. Deve ser um espectáculo digno de ser visto. Os pais da Fernandinha tinham ido para lá trabalhar nas limpezas com os padres. Se calhar estão mortos ou queimados. Estavam sempre a chamar-me nomes e a cuspirem-me na cara, os nojentos. A Fernandinha merecia melhor sorte. Vou ver se ela lá está. Se não morreu, a primeira coisa que deve fazer ao saber do incêndio no hospital é querer saber dos pais. Se estiverem mortos tomo conta dela. É muito o dinheiro e a riqueza que carrego. Depois de a procurar por lá, tenho de arranjar maneira de esconder este peso. Com tanto terço e crucifixo que trago aqui dentro, já devo estar bem abençoado.

Mal consigo avançar com tantas pedras tombadas e mortos espalhados pelo chão. Tanto choro e tanta reza juntos fazem uma barulheira maior que a do abalo da terra. Chora-se ao ritmo das orações salgadas. Este padre parece doido a chamar nomes ao Senhor. Anda a dar estaladas e a distribuir bofetões aos que pedem a clemência de Deus. E agora até a si mesmo dá sopapos. O mundo ficou doente com tanta destruição. Quero lá saber, quero lá saber! E as pessoas que correm por todos os lados, chamam todos os nomes que existem, desfazem e retirem alguns pedregulhos para arrancarem outros que se encontram no meio das ruas entupidas. Desaba o convento do Carmo lá no alto! É um estrondo valente que se faz sentir junto com os berros e mais berros das gentes que por lá se devem ter finado.

A Fernandinha tem de estar viva, tem de ser!

Começa-me a pesar este peso todo, mas nem pensar em aliviar as bolsas, isso é que não. Era só o que faltava. Subir e descer tanto monte de pedregulhos e de madeiras rachadas cansa. O céu está escuro do fumo dos incêndios e custa mais ouvir os gritos dos queimados dos que se lamentam no meio das paredes destruídas. Os cheiros também são novos, intensos e apodrecidos.

O que me quer agora aquele soldado de el-rei? Se aí estás preso assim ficarás, tenho bem mais em que pensar. Pede ajuda a quem te possa socorrer que eu estou à procura da Fernandinha. Um homem tão grande a chorar desta maneira, nunca vi! E o povo não pára de correr! As suas pernas trazem-nos ligeiros nesta direcção, mas porquê?

Uma parede de água? Mas o que é lá isso? O que estão para ali todos a gritar! Uma parede de água, fujam que uma parede de água sobe o rio para nos afogar? Vai lá lembrar aos demónios do céu mais esta maluqueira!

E nem que os ruídos de há pouco se juntassem todos novamente conseguiam alcançar em tamanho os da montanha de água que veio para nos matar. Não tenho hipótese de fuga. A onda arrasta tudo à sua frente, uma lixeira sobe as ruas destruídas por cima do rio que engole vivos, mortos, e cresce como um gigante na minha direcção. Vou tentar apanhar aquele imenso bocado de madeira e agarrar-me a ele com todas as forças que me restam. Largar o peso do meu tesouro está fora de questão, nem que me afogue e me leve consigo para o meio deste oceano que engole as ruas destruídas da cidade!

Subi a custo para cima do muito entulho que é arrastado pelo mar que entra pela cidade. Alguns seguem como eu, carregados em jangadas descobertas no meio de tantos destroços. Muitos são os que não sabem nadar e desaparecem rapidamente debaixo do tapete de água. Perdi um dos sacos nesta aventura, mas se não o largasse teria sido impossível apanhar a boleia deste tapete salvador. Olho para os lados e em alguns dos edifícios que se mantém de pé a água e o lixo rebentam portas e janelas para lá dos primeiros pisos. A água tem uma força gigantesca e continua a arrastar e a destruir tudo aquilo que apanha pelo caminho. Se não fosse pela paisagem destruída, pelos gritos e pelo medo instalado e que também a mim se colou, gostaria de voltar a viver esta experiência outra vez. Não sei se este pedaço de madeira alongada vai resistir por muito mais tempo. O que me vai valendo é a minha pequena figura. Por uma vez na minha vida miserável, aquilo que sempre serviu de gozo e de tanta troça é aqui uma vantagem. Sou leve e muito ligeiro. Consigo dar bom rumo a esta ruinosa barcaça que me transporta pelo meio da confusão. Alguém muito importante se deve ter portado mal para que estas forças da destruição tenham sido encomendadas destruir a cidade. Eu faço como os outros, quando os matam na praça pública. Vejo o espectáculo e sigo o meu caminho com a alma mais leve.

Será isto o fim do mundo? Se for, não vale a pena tentar perceber quais as palavras e as orações em falta pois tudo acabará dentro de instantes. Quero apenas descobrir a minha Fernanda antes que tudo se desmorone e transforme em pó, lama e lembrança.

Apenas peço isso!

Apenas peço isso e nada mais.

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