quinta-feira, 6 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação III


Tenho de me alinhar antes de dar o aviso. O dia começou alterado nesta casa, e ainda para mais hoje, com tanto que há para fazer. O senhor Lefebvre nem imagina a dificuldade que vou ter em convencer toda a criadagem a abalar, sem motivo aparente, para fora da cidade. Vai ser o bom e o bonito! A Eulália não vai aceitar bem a ideia, ainda para mais sem que o senhor me tenha dito qual o verdadeiro motivo para nos apressarmos nesta fuga. Os primeiros raios de sol dizem-me que estou muito atrasada. Devemos sair daqui rapidamente. O que será que de tão misterioso e grave poderá estar para acontecer? Não admira o espanto da Eulália e de Simplício. As outras duas tontas nem sabem bem o que pensar. As suas cabecinhas são muito lerdas e a realidade acaba sempre por se impor às tolinhas. Se lhes disser que os talhantes as esperam para as acompanhar à missa dos finados, lá na entrada norte de Lisboa, arrancarão desmioladas sem dar conta da patranha. Qualquer disparate as fará sair de casa sem problema. O mais complicado é fazer com que a nossa boa Eulália daqui se arrede com o marido e bem depressinha. Melhor mesmo é arrancarmos os três o quanto antes, ir na sua companhia, mesmo sabendo que a velhota não gosta nada de mim, mas do mal, o menos. E se morrermos todos, como será? Sim, morrermos, pois essas foram as palavras mais assustadoras que o senhor Lefebvre usou. Não terá sido por qualquer estranho prazer que me terá dado esta instrução. Pela casa fazem-se escutar os passos apressados dos médicos que procuram as montadas nas cavalariças. Mas que situação mais aflitiva. Nunca antes vi o gordinho assim tão agitado. Não nos viram mas a sua saída foi visível e bem notada por muitos dos que já se deslocam para as igrejas, catedrais, basílicas e conventos. Altos desaforos e palavras muito desagradáveis foram bradadas pelos muitos que ali se encontram e que quase foram derrubados pelos ilustres cavaleiros. Muitas orações atravessam a boca do casal que acompanho. Súplicas e mais rezas da Eulália, pois todos estes estranhos comportamentos a si muito medo provocaram. O velhinho Simplício ouve muito mal. Dificilmente os seus olhos gastos olham para este mundo com a mesma esperança da filha. Já nem está por perto. A tola da Irene levou-a apressadamente consigo para procurar os talhantes no lugar que lhes dei como reservado. Se mal vier a acontecer, as duas terão ganho salvação. Foi tal a rapidez com que as pernas as levaram daqui para fora atrás da história dos talhantes, que até me dá pena a cabecinha oca da Laurindinha.

Andamos ao contrário do povo! Torna-se muito complicado fazer assim o trajecto. Orações e muita celebração religiosa levam a multidão para os locais de culto. A maioria deles situa-se nos locais opostos àquele para onde tentamos caminhar. Por muito que tente e que sinta, não consigo imaginar o que poderá estar para acontecer. O dia está bonito, a temperatura amena e quase primaveril, o povo passeia feliz neste dia. Mas que mal estará para vir ao mundo que tanto atrapalhou o meu sensato senhor Lefebvre. Subimos em direcção ao ponto mais alto da colina que dá para lá do castelo. A visão que daqui temos da cidade é seguramente das mais perfeitas. O Tejo continua a sorrir-me, agora com maior intensidade. São cada vez em maior número os barcos que chegam e nos visitam. Adoro ver o reflexo das suas velas e mastros nas águas do rio. Parei por alguns momentos, os suficientes para ter perdido de vista a Eulália e o marido. Não faz mal, deixá-los ir. Se tudo correr como acredito, não se passará nada e até ao final do dia estaremos todos de regresso a casa.

*

Não consigo ver nada que possa vir a causar situação de perigo ou, como o gordinho de forma tão alterada me disse, tantas mortes que o inferno esfregará as mãos de contentamento. O que terá acontecido ao senhor médico para nos espavorir com estas notícias atormentadas? Lá em baixo as pessoas andam atarefadas mas felizes. Tentam chegar a tempo às igrejas apinhadas. Hoje o dia acordou com muito ânimo e a todos parece abençoar. São tantas as famílias, tantas as crianças que acompanham os pais e demais adultos. Não fazia ideia que na cidade se achassem quase tantas crianças como adultos. Muitas param ou ficam na praça a apreciar o espectáculo das fragatas reais e de muitos outros navios fundeados ao largo do Tejo. A Eulália e o Simplício ficaram definitivamente fora de vista. Fiquei aqui especada uma pequena eternidade a observar o cenário, mas não consegui resistir. Vou continuar a marcha para longe daqui, tal como me foi dito.
Mas, o que é isto? O que se passa? As pernas e o corpo tremem com tanto vigor que tenho de me ajoelhar para não tombar. É como se estivesse febril. Cravo os dedos das mãos com firmeza no solo para tentar equilibrar o corpo. E que barulho ensurdecedor é este que rebenta das entranhas do chão como uma imensa trovoada? Tento levantar-me para ver o que se passa lá por baixo, nas apinhadas ruas de Lisboa, mas o meu corpo não consegue estabilizar e tombo com toda a facilidade para o meio do caminho que se agita e avança como uma carruagem furiosa. Meu Deus, que força do destino é esta que nos visita neste Santo dia? Os barulhos são ensurdecedores. Nem cem trovões de outras tantas trovoadas a rebentar ao mesmo tempo conseguiriam atingir a força dos que aqui estou a ouvir. O mundo vai acabar! As paredes das casa, das igrejas, dos palácios estão todas a desabar, a cair em cima dos desgraçados que seguiam felizes o seu caminho. Onde estar Lefebvre, Deus meu?! A cidade transformou-se num verdadeiro inferno. Não consigo manter-me de pé. Dois ou três passinhos e caio logo como uma criança que experimenta os primeiros passos. Escuto os gritos das pessoas amarguradas que ficam por debaixo das muralhas, das paredes e dos telhados que lhes caem em cima sem misericórdia. É o inferno que brota dos pavimentos e que engole tudo sem critério. O chão não pára de tremer e os estremecimentos crescem em violência. Será isto possível? A cidade será arrasada pelas forças do demónio. Muitos terão sido os pecados cometidos para que estes horrores nos tenham sido encomendados. Os tremores continuam a lançar-me para o chão. Nem consigo estar de joelhos. Deito-me como uma crente em oração, com os ouvidos tapados pelas mãos e os olhos bem cerrados para me ausentar por momentos da tragédia. É impossível! O ruído sente-se por todo o meu corpo. É um monstro que me cobre da cabeça aos pés, abana-me com tanta força que as minhas lágrimas já não são de desespero, são de dor. Sou pisada por uns quantos que correm desorientados em direcção ao centro dos infernos, gritando nomes e esbracejando como loucos na procura dos seus.
Este momento não está a acontecer. Nas minhas ideias desligaram as luzes da razão e a escuridão lançou-me para este pesadelo que julgo estar a viver mas que, na realidade, só se passa na minha enegrecida imaginação. São os meus pecados a castigarem-me os sentidos. Terei tantos por confessar que o Senhor lançou por sobre mim a sua fúria. Uma fortíssima dor rasga-me o peito e aflige-me o corpo num frenesi atormentado. Este é o maior de todos os pesadelos, é sentido como se fosse real, como se estivesse mesmo a acontecer. É maior que todos os que já me foram servidos nas noites mal dormidas da minha juventude.
São cada vez mais os que me pisam ao correr desvairados na procura dos seus. Caem e voltam a levantar-se, correm desorientados, tentam combater a agitação do chão que continua a bailar esta dança mórbida. Alguns mexem-me para verificar se não estarei morta, ferida, mas não tenho coragem para afastar as mãos dos ouvidos ou sequer abrir os olhos. Desejo que tudo acabe como começou. Ao ficar assim nesta escuridão a que me impus, anseio que tudo possa ser apenas fruto da minha atormentada fantasia, nada mais. Rezar aos Céus, prometer cumprir com todas as obrigações de alma cristã, voltar a percorrer os seus caminhos. Será por força deste meu sentir que o pesadelo acabará por se desfazer, devolvendo-me o dia antes de me ter sido roubado? Espero que sim, mas o chão continua a tremer para todos os lados não dando sinais de afrouxamento.
Os trovões de mais de cem trovoadas continuam a soltar-se das mais profundas cavernas da terra. Atacam os lisboetas por todas as maneiras. O cheiro a fumo faz-se também sentir. O ar torna-se pesado, denso, mistura-se o odor da morte com o da pedra e da madeira queimada, com o da poeira e com o do sangue dos muitos feridos que saem aflitos das habitações destroçadas. Por aqui não tombam as paredes como lá por baixo. O chão estremece, as casas ficam rasgadas nas fachadas mas não se desmoronam com a facilidade das do centro da cidade. A colina fornece alguma protecção a estes habitantes. Muitos deles continuam a sua correria desgovernada pelas vielas abaixo, gritam como almas danadas, esbracejam, choram, rezam e imploram por uma bonança sagrada. E por estes momentos de loucura, por estas rezas e súplicas, a terra parece dar ouvidos à dor das gentes, abrandando a sua medonha efervescência.
Dou algum descanso às lágrimas. Levanto-me com as pernas trementes, como se ainda o chão lhes desse o movimento. Abro os olhos na direcção do Tejo, na direcção das ruínas, e não consigo controlar a minha dor. As lágrimas voltam a inundar-me a vista e os soluços saem do meu peito em penosa cadência. Como é possível o panorama da cidade do Tejo estar completamente aniquilado. As mais altas torres, o convento do Carmo que do outro lado da cidade se abate com um estrondo feroz, a zona ribeirinha devastada e destruída, o palácio, as casas e as ruas que não se conseguem distinguir no meio de tanto pó, de tanta pedra abatida. O povo caminha desorientado no meio da destruição. Consigo perceber daqui o largo junto ao hospital, que também tem uma espessa nuvem negra a sair da sua igreja. Há muita gente apinhada no meio do Rossio, e mais vão chegando, aumentando em muito o número daqueles que por lá se encontravam. Espero que Lefebvre esteja vivo, que seja um daqueles muitos que lá se encontram.
Barulho? Mas pode lá ser uma coisa destas! Rebentaram novamente das entranhas do chão os trovões dos demónios. No inferno juraram terminar com a raça dos homens. Atiro-me novamente para o chão, ainda mal refeita da terrível sensação de há momentos e eis que tudo se repete com redobrada violência. Os gritos são agora ainda mais audíveis. As mãos que me tapam os ouvidos pouca protecção me fornecem e sinto o corpo a ser atirado para todos os lados com grande facilidade.
Vai mesmo acabar. O mundo vai hoje ter um fim!

Escondo-me atrás das mãos, atrás dos barulhos penetrantes, atrás do medo e das rezas que vou cantando baixinho, atrás dos olhos cerrados que procuram a cidade de ontem, a cidade do Verão passado, a cidade que já não pertence a este tempo que a transforma. Toda eu tremo. As vidas são arrecadadas, vão sendo apagadas à medida que os abalos arrasam os poucos edifícios que resistem às sacudidelas do mundo. Entendo isto pelos inacreditáveis ruídos que crescem como um gigante à minha volta. Nada nem ninguém sairá poupado destes fortes estremeções. E um abismo suplicante corre do centro das muralhas à procura de uma explicação que tarda em surgir. É impossível isto estar a acontecer! Não podem existem forças com uma tão grande capacidade de destruição, muito menos a surgirem assim do nada, sem nenhum aviso. O médico amigo de Lefebvre tem estranhos conhecimentos. Quem lhe deu notícia destes horrores? Terá sido o próprio Demónio? A julgar pela dimensão dos poderes, será ele próprio servo dos infernos. Mas se assim fosse, qual a razão que o terá levado a dar conta deste desastre ao senhor Lefebvre?
Vamos perecer! Depressa nos juntaremos aos defuntos que lembramos neste dia.
A terra não dá tréguas! Não sou capaz de pensar. Um sabor com travo a fel inunda-me a garganta. Tusso de maneira nervosa e incontrolável, como se fosse o meu peito sair pela boca fora. É a alma que me destrói a esperança.
Vejo a figura do meu gordinho senhor Lefebvre deitada nos lençóis de mel. Foi mesmo agora! Como é possível que em tão curto espaço de tempo as nossas vidas desapareçam no centro desta imensa náusea?
Sinto-me desfalecer. Cada vez mais gente enlouquecida me pisa e violenta o corpo ao correr sem destino em todas as direcções. É um pavor tremendo este que tomou conta dos habitantes desta Lisboa destroçada. Não encontro forças para reagir. Aguardo com a dor marcada em tantas partes do meu corpo por este fim cruel que me estava consagrado.
Isto não é um sonho nem um pavoroso pesadelo!
É a realidade impiedosa que se abate sobre todos os habitantes deste mundo.

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