terça-feira, 4 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação II


Será o meu senhor Lefebvre capaz de receber assim estes prazeres e deles fazer segredo? Na nossa vida tudo fica marcado pela dor e pelo prazer. Com esta língua esperta e afiada de francesinho atrevido e vaidoso, não vai conseguir manter segredo das histórias destas noites de consolo transpirado. Aos meus pensamentos nunca conseguirá chegar, mas ao dos amigos abastados e perfumados, aos ordinários miseráveis que se riem babados sempre que passo por eles, ébrios jogadores de vícios mais que duvidosos, a esses vai certamente contar os pormenores quentes destas noites. É um gordinho interessante e meigo. Nem sei porque me surgem estes queixumes à cabeça. Vale bem todos os momentos que passo em sua companhia. Tudo o que possa contar aos seus compinchas de desafio será fraco consolo para esses bêbados idiotas que o escutam. Este senhor médico que está de visita é figura distinta e muito diferente dos amigos tolos que por aqui se apresentam durante as ceias. Educado, nem parece dos nossos. Lefebvre diz que é a pessoa mais inteligente e culta que jamais conheceu. Desde que se encontraram em Paris, há mais de dez anos, nunca mais deixaram de ser amigos e confidentes, ainda para mais, senhores do mesmo ofício. Só mesmo o senhor ministro do rei disse conhecer figuras quase tão distintas como as deste médico brilhante. Até dá gosto ouvir a maneira rebuscada como ele procura as mais certas palavras para nos dizer as coisas. Vê-se logo que é uma pessoa diferente. E tu? Ressonas de exaustão barriga de banha. Já lá vai o tempo em que nos derretíamos um pelo outro a noite inteira. Estão a fazer-te mal os guisados oleosos da Eulália mais o pão de canela que ela te amassa propositadamente conforme a receita secreta da família. Vai ser a tua maldição, vais ver!

Ruído!

Mas quem poderá andar por aí a estas horas? Se calhar todo aquele barulho que fizemos há instantes acordou o distinto senhor. E tu, de tão alagado em suor com o calor dos nossos carnais afazeres, mais esta madrugada estupidamente quente para a época, pareces ter tomado banho. Vou abrir a janela para deixar entrar alguma da frescura deste sábado. Bom-dia Tejo querido, sempre sorridente, como se fosses tu o meu melhor amigo. Vou sair daqui que o dia já se adivinha. A Eulália quer acabar os preparativos das primeiras refeições para ir à missa com as meninas e o Simplício. Este dia, para mim, serve somente para receber em visita a memória dos meus pais, tal como em anos anteriores. Nunca soube onde os enterraram nem que rumo lhes foi dado pelos meus tios e primos. Gente louca! Caridade alguma me fará voltar àquelas terras escuras e amaldiçoadas!

Tenho de ir, há muita coisa a fazer.

Deixar ficar o senhor Lefebvre a ressonar mais uns instantes. Bem o merece depois de tanto exercício esforçado. Admiro-lhe a força e persistência, garotos há que lhe gabariam a genica.

Ruído!

Continuo a escutar este leve ranger. Melhor será abrir a porta e ir dar conta do que se passa.

É o senhor médico, mas, que fará aqui acordado tão cedo! Apanhou-me de surpresa. O seu rosto não desvenda qualquer expressão de espanto, antes desenha uma carregadíssima e incómoda preocupação. Está tão pálido que jurei ter visto um fantasma colado na porta dos seus aposentos. A sua figura tão alta e tão esguia quase me fazia largar o castiçal. Havia de ser o bom e o bonito!

Mas, que me conta? Maior é o susto que as suas palavras me provocam do que o causado pela sua figura de cera assim colada em frente ao quarto. Que história é esta de poder acontecer uma tragédia tremenda? Muitas vidas estarão em jogo se não der aviso ao senhor Lefebvre? Mas, mas, não percebo nada do que me diz! O seu rosto parece não mentir, e dos olhos escapam indicações ainda mais aterradoras do que as provocadas pelas suas palavras! Tenho de ir! Corro a avisar o meu amante com tamanha rapidez que a minha nudez acaba por se desvendar atabalhoadamente ao ilustre visitante. Apagou-se a luz da vela, abro a porta do quarto de onde acabei de sair, empurro Lefebvre para fora da cama com tamanha violência que o atiro para o meio do chão. Embrulho-o nos primeiros lençóis que encontro e mando-o imediatamente falar com o seu amigo médico, dando-lhe conta do efeito que as suas palavras tiveram em mim! Estou apavorada e nem me considero pessoa para grandes aflições.

Faço-o avançar ainda estremunhado em direcção ao amigo, mal embrulhado nos dois lençóis da cama desfeita. Não consigo evitar duas pequenas gargalhadas, misto de nervosismo e de gracejo. As nossas figuras, a esta hora da mal acordada manhã, avançando nestes preparos pelo corredor mal iluminado, acabam por me parecer muito engraçadas. Começou misteriosa e divertida a alvorada deste santo dia.

Aqui permanecemos os três por mais alguns instantes. Lefevbre disse-me para aguardar. Podem vir a precisar da minha serventia.

Os dois trocam impressões. Vê-se bem que a amizade que os une é muito forte. Parecem irmãos, dos verdadeiros, daqueles que nunca duvidam das palavras um do outro. Mas o assunto deve ser de uma grande importância. O gordinho ainda há pouco estava meio estremunhado e agora sai como uma flecha disparada na direcção do quarto. Corre de forma tão desorientada que até deixou cair os mantos que o cobriam, mas que figura! E agora? Que faz ele com aqueles assustados olhos azuis a olharem alucinados para mim?

Diz-me que os milagres não existem. Que tenho de avisar toda a criadagem para que saiam desta casa e que fujam o mais depressa possível para fora da cidade. Que não questionem de forma alguma esta ordem, por mais enlouquecida que possa parecer. As suas vidas dependem da rapidez com que se apressarem a correr em direcção ao norte da cidade. Diz que precisa de mim com vida ou a sua deixará de fazer grande sentido. Toma-me nos seus braços com violência e uma angústia no olhar, como se necessitasse mesmo de um milagre que vem procurar bem no fundo na minha boca. Beija-me como se este fosse o último beijo de nossas vidas. Sei onde o posso encontrar. Sei onde o devo encontrar, daqui a três dias, como me disse baixinho ao ouvido. E eis que volta a desaparecer no desarrumado quarto com pressa para se arranjar.

Toda esta estranhíssima situação não faz grande sentido. Lefebvre é tudo menos louco para brincar desta forma com a vida de todos os que aqui habitam e o servem com a maior das dignidades. Vou fazer exactamente aquilo que me disse. Acordar quem ainda dorme, arrumar com rapidez o que for de necessidade e abalar conforme disse em direcção ao norte da cidade. O médico deu-lhe notícia de algo verdadeiramente espantoso para que o meu gordinho me deixasse neste estado de nervos. São almas destas que tudo sabem, não serei estúpida para colocar as nossas vidas em risco não cumprindo com a alucinada ordem que me foi dada. A ele lhe devo já a responsabilidade do milagre da minha vida, esta será mais uma das maneiras de me proporcionar novamente a salvação.

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