segunda-feira, 6 de setembro de 2010

QUARTO ACTO


- As chamas atingiram uma altura descomunal, bem mais altas que as torres da Sé ou as muralhas do castelo. Não queria descobrir mais nada nesse dia. A dificuldade em respirar dominava toda a atenção e nada mais interessava a não ser sair vivo daquele inferno. Depois, senti que era bem mais importante conseguir trazer para a praça os que se encontravam prisioneiros na parte de cima do hospital, pois a escadaria tinha desaparecido no primeiro dos grandes abalos. O resto já tu bem sabes. Estou fartinho de te contar sempre a mesma história.

Os olhos de Rafaela brilham de cada vez que os seus pedidos são atendidos. Cotovelos bem vincados na cama, antebraços encostados nos pulsos, mãos a segurar o rosto. As pernas bailam levemente para trás e para a frente mostrando os pés alegres e esguios. Por detrás deles a janela do quarto deixa perceber Santarém a acordar lá ao fundo.

- E depois gordinho, vá lá, conta como só tu bem sabes o resto dessa aventura. Não vais deixar a tua pequena triste o resto do dia, pois não?


As mensagens encontram-se na obra que o rei escondera tão religiosamente de tudo e de todos. Herdada que foi aos espanhóis, carregada com as imagens de angústias e medos, de monstros e de um fim-de-mundo onde as figuras voadoras de que Fernanda falou enquanto dormia aparecem iguais à sua descrição. O fogo consome a cidade do pecado, a água putrefacta com os restos da destruição que varre edifícios avança pelo rio onde barcas em formas de peixe, ratazanas e um indescritível rol de figuras fantásticas e corpos alterados vão caminhando sem lógica nem rumo. As sagradas figuras e os sacerdotes parecem demónios. Um aparece mutilado nas costas com um monstro a seu lado, uma mulher idosa e enferma tem na cabeça uma touca feita com o tronco de uma árvore destruída e carrega um bebé montada de lado na ratazana. A personagem não possui pernas, tem os membros inferiores a terminar em forma de enguia ou réptil. O pecado da luxúria está semeado por várias imagens ao longo da pintura. Deus permite aos diabos tentarem os santos, Deus permitiu que os horrores do Inferno atingissem a nossa cidade como se ela fosse um espectáculo de pecado e desvirtude. Foi tal o receio do rei, que ao recordar estas imagens após a catástrofe me passou a obra para dela fazer o que muito bem entendesse. Farei com que a minha dedicação ao trabalho descubra uma outra vida, traga uma outra esperança para a cidade que vencerá o dia deste juízo. Transportarei a nossa capital para valores de vida e de salvação bem diferentes dos horrores do inferno. Estas tentações estavam também secretamente guardadas nos sonhos de Fernanda. Que surpresa terá ao ver a obra agora em meu poder, que surpresa Mestre Bernardo e ela sentirão quando lhes mostrar este pedaço de sonho pintado há tantos anos com um detalhe e uma técnica verdadeiramente brilhantes. Só um dos nossos poderia ter antecipado assim algo que acabou de acontecer faz meses na nossa Lisboa. E o facto de esta pintura se encontrar no local do acontecimento no dia e na hora da loucura é tudo menos simples coincidência. Mais cedo ou mais tarde chegarão os dois para a conversa. A floresta não será abrigo para os seus receios por mais tempo do que esta noite. Fernanda sabe isso tão bem como o próprio Mestre Bernardo. Os olhos de ambos não conseguem ocultar um propósito diferente do que transmitem. A noite que passarão juntos na floresta vai fazer toda a diferença. Depois podemos avançar com o que de verdadeiramente importante nos aguarda e até, quem sabe, caminharmos pelos céus em barcaças voadoras e gigantescas como Fernanda narrou e como pintou Mestre Hieronimus.

As pontes servem apenas para passearmos entre o Céu e o Inferno.


Abrir a porta desse esconderijo sem nenhuma escolta. São muitos os minutos em que os acompanhantes não dão sinal de vida. Era o que eu imaginava. O senhor ministro não tinha forte intenção em descobrir Fernanda. O teatro que demonstrou inicialmente em a querer encontrar foi bem ensaiado. Seria impossível que os guardas pudessem ficar para trás perdidos com tamanha facilidade. Foram ordens superiores que os fizeram voltar. E assim vejo mais uma íntima vontade ser realizada. Habituamo-nos com facilidade a esta espécie de jogo e de poder. A capacidade divinatória de Fernanda está por perto. É mais poderosa do que antes a voz que me vai dizendo para avançar na direcção do coração do bosque. Em protecção total e escondida da luz do dia, dos mais perspicazes batedores, das clareiras que viviam lá atrás, a pequena gruta dá-se finalmente a conhecer pela vegetação que lhe alcatifa a entrada. Nunca estive tão perto da razão e da verdade, e nunca antes alguma coisa me pareceu tão real e tão presente. É aqui que Fernanda se encontra resguardada de tudo e de todos.

Deixei-me conduzir até ela para que me possa renovar com o seu amor.

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