sábado, 18 de setembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação III


-Anda, entra! Vem até aqui. Senta-te perto de mim. Preciso que me dês a tua mão. Promete que vais dar a devida atenção ao que te vou dizer. Talvez me possas começar a entender de uma vez por todas. Enquanto permaneci estes instantes aqui sozinha e em silêncio, vi a casa de todos e de ninguém. As memórias de tanta dor, de tantos sofrimentos, ficaram-me coladas na alma com tamanha intensidade, que brotaram em mim as mais nefastas tenções de vingança. Não saberei ao certo quem seria se essa espada de flagelo que me marcou o crescimento não estivesse carregada com tanto veneno. Cresci com a insuportável escuridão da noite que me era servida encastrada em medo, carregada de bafos e tormentos. Senti cedo demais tudo aquilo que não devia. Comecei a conceber as noites como os dias, iluminados e imensos, insubstituíveis na sua luminosidade. As noites não deviam acontecer e com o seu desaparecimento, tudo o que de mal delas era vomitado para cima do meu corpo deixaria finalmente de acontecer. Mas as noites continuaram escuras, sombrias, dolorosamente cruéis. Era criança demais para conseguir transformar esse querer em realidade. Todos os dias, a cada momento que passava, pedia aos anjos do céu que me escutassem, que pudessem chegar em meu auxílio e acabassem para sempre com os sons, os cheiros e as torturas que vinham embrulhadas no mais fino dos pavores no fim de cada entardecer. Anos a fio as noites passaram-se assim. A colecção de pecados e de ruína tomou de vez conta do meu espírito em mais um triste momento de solidão. Até que naquele sagrado instante as preces foram minhas aliadas pela primeira vez. Foi aquele, como podia ter sido um qualquer outro. O que me tinha sido dado a provar foi o mais doce veneno do pecado. Com as forças difundidas pela minha quase loucura, tanto foi o medo e a agonia que em segredo engoli, que gastei o meu último pingo de humanidade. Nada fazia sentido, a morte e a vingança eram tudo o que fazia sentido. A realidade começava a vestir-se com as roupas que eu escolhia. Usava apenas os trajes que pudessem povoar castigos e impiedade. Foram muitas as vidas que alimentaram a minha sede de vingança. E de vingança em vingança, comecei a colorir com as tintas mais escuras tudo o que apanhava pela frente. As minhas feridas começaram a sarar. Escolhi este difícil caminho como um presente do demónio. Cega, surda e muda, vivi outros tantos anos a descarregar esse ódio e essa sede de vingança fazendo uso deste misterioso dote divinatório. Não consegui viver, tal não era possível pois só imaginava actos de pura loucura. A todos aqueles que fomentaram dor e crueldades comparáveis àquelas que sofri, pintei-lhes no rosto as cores amarguradas do meu próprio sangue. E só com a destruição de uma cidade inteira, uma capital de um império, finalmente comecei a sentir alívio para tanta dor. E também nesse dia voltei a ver o teu rosto. Voltei a dar com esse teu rosto inesquecível, o mesmo que me aparecia quando a mais escura das noites mais escuras me convidava do lado de fora da janela do pequeno sótão para eu saltar. E o sorriso, a luz, a cor de esperança que via carregada nos teus olhos deram-me sempre forças para respirar. Acabaste por vir ter comigo. As dificuldades iniciais nesta fuga serviram apenas de pretexto para fazer com que o senhor ministro pudesse cumprir o seu papel. Ele sabe tão bem quanto nós as roupas que vestimos e os méritos que carregamos. Bernardo, sabes bem o que eu sinto por ti e eu bem sei tudo aquilo que tu sentes por mim. Se assim não fosse o teu olhar não teria caminhado na minha direcção e nada disto que nos está a acontecer poderia ter sequer acontecido.

Fernanda está belíssima. As suas palavras marcaram-me perigosamente o coração. Vou beijar-lhe os lábios, abraçar-lhe o corpo quente, sentir o suave perfume da sua pele macia e provar de uma vez por todas o delicado sabor desta paixão.

- Bernardo, vem até mim, sejamos um e um só. Vamos acalmar a ira do tempo maldito que nos suga a vida toda num instante.

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