quarta-feira, 15 de setembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação II


Ramiro testemunhou o nascimento de algo medonho e sufoca. Desgastado, perde toda a réstia de esperança que ainda lhe sobrava para resistir. As criações passaram tão ao lado da minha vida que nada mais importa, nada mais tem verdadeiro interesse. O amor assim não pode ter existência pois são muitas as mordaças e as apertadas ataduras que o comprimem até à exaustão. Foram consumados todos os gostos de mudança. Foram utilizadas as cruéis ferramentas da vingança com sábia habilidade, e os homens e mulheres com carácter acabaram assassinados sem que ninguém tivesse suspeitado desses actos. E o que fizeram os Libertadores? Afinal, que gestos nobres nos recordaram esses senhores? Nenhum! Nada fizeram! Os Libertadores não vieram em nosso auxílio? Alguém os ajudou para que pudessem vir em nosso auxílio e fazer justiça? Ninguém, nada, nada, nem ninguém, e nenhuma investigação a estes crimes será alguma vez abalizada. O juiz supremo virou os olhos para o lado, tapou a face com as mãos com que tudo criou, jogou um jogo triste e sem regras para que todos saíssem derrotados do julgamento. Mas a memória dos mais prezados Libertadores ficará para sempre defendida pelos cavaleiros que enfrentam as mais lastimosas ofensas. Serão eles os profetas, os guardiões vingadores deste acto cobarde que foi urdido contra a nossa cidade, contra o país e contra o Mundo. A condenação perpetrada por esse juiz não foi um acto inocente, não foi um acto inocente, não foi… Os corpos dos miseráveis, dos malditos, dos despedaçados, dos infames, das mulheres ofendidas e violadas, das crianças desmembradas, dos cegos, dos desfigurados, dos que perderam tudo e todos nesse dia que se julgava Santo, voltarão da terra dos mortos, acompanhados dos Libertadores e dos seus exércitos para fazerem justiça. Precisam depois que os perdoem, precisam depois desse perdão, desse indulto como forma de esperança. Ninguém pode imaginar em que dia e a que hora esse regresso será permitido. Nem mesmo eu, Ramiro Melo, consigo adiantar essa data. As testemunhas serão acompanhadas pelos Libertadores que mencionarão o sofrimento de todas as vítimas, de todas… de todas sem excepção. Multiplicarão esses relatos mil vezes e durarão mais de mil dias, muito mais de mil até que todas as histórias possam ser comunicadas. Eu lá estarei para confirmar o fim destes tormentos, nesse raro e longínquo dia em que os Libertadores vão finalmente entender como é deliciosa e consistente a realidade.

- Água, tragam-me água. Ao menos umas gotas de água para acalmar tamanha agitação. Os braços não se acalmam, não se acalmam! A dor avança por todo o corpo, faz uma sopa estranha na minha cabeça que salta como um simples adereço, um simples e inútil adereço. Água, tragam-me água antes que mais um naufrágio de sangue me fragmente a alma e me faça novamente desejar o indesejável. Rápido… sente-se já o fedor das sombras negras dos Libertadores, dos mais mentirosos e falsos Libertadores. Troco todas as minhas preces por um simples trago de água para que possam desaparecer para sempre das paredes manchadas do meu cárcere.


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