quinta-feira, 9 de setembro de 2010

QUARTO ACTO - continuação I


Tenho um palpite de que o dia trará novidades e muitas recordações de quando por aqui andei uma primeira vez. Constança avança pelas ruínas da cidade coleccionando imagens como uma verdadeira investigadora histórica. Pompeia ficou umbilicalmente ligada à adversidade. Algumas das suas habitações encontravam-se ainda a ser reconstruídas quando a erupção do Vesúvio arrasou com a cidade. Tinham sido danificadas e algumas foram mesmo destruídas por um terramoto que acontecera cerca de dezassete anos antes da grande hecatombe provocada pelo vulcão. O simples facto de estarmos neste local, debaixo do olhar silencioso da imponente montanha de fogo, semeia sentimentos de total respeito pelas leis da natureza e pelas forças que ela produz. Tranquilamente, ensina-nos qual a verdadeira dimensão da nossa existência, sem rodeios e sem vaidade. Imperial e impiedosa, coloca em sentido todos os que por aqui caminham. Até que desapareça de vez esta espécie de nervoso miudinho que me derrete os medos, o coração vai rebentar-me no peito com a emoção.

Fizemos bem ter escolhido esta altura do ano para virmos até cá. O céu é de um azul indescritível, o calor acalmou por uns mágicos e sortudos dias, a frescura do Tirreno sente-se como um perfume abençoado. Que melhor presente podíamos desejar para o passeio de hoje. Cumprir estas férias, este descanso, esta decisão de voltar a flutuar por entre as memórias de criança. Recordar os receios, as palavras que ainda não me foram devolvidas como esperava. É complicado ter vindo a viver este sentimento desde que me recordo, este estranho hábito de me rever por aqui e que fui alimentando anos e anos a fio. Constança continua a trabalhar as imagens nos cartões de memória que substituem os rolos com que se alimentavam as recordações de antigamente. Eu tento descobrir em qual das esquinas, em qual dos recantos da cidade me abordaram os antigos habitantes desse longínquo primeiro século em que tudo aconteceu. Passando para lá das Termas Stabiane, a paisagem e o enquadramento das ruas começam a fazer muito sentido. As memórias mais profundas parecem encaixar-se ao chegarmos à casa de Menandro, principalmente desde que nela entrámos e eu deparei com o pátio e o seu jardim interior. Liguei-me ao passado, quando por aqui corri leve e muito gaiato. Caminhava bem à frente de meus pais, para ver tudo antes deles, para colocar os olhos nas belas coisas, sempre em primeiro lugar. Aqui me lembro de ter chegado e de me ter sentado no pequeno muro junto das colunas do átrio a descansar. Ainda mais rápido que as minhas pernas, as palavras dos habitantes desta morada começaram a sair das paredes bem conservadas e entraram pela minha cabeça sem terem pedido qualquer licença. Suspeitei de coisas que já não me recordo. Uma telefonia carregada de vozes completamente indecifráveis no início da palestra estava ligada dentro de mim.


Desenhadas nas colunas do pátio interior descobri essas memórias, esse momento em que o espanto tomou conta de mim, essa prosa de sentido único que comecei a entender. Fiquei por conta do tempo, desse outro tempo e do de agora, ligados pela insólita mensagem que me foi oferecida pelos donos desta morada. Constança capta todos os detalhes da casa. Lembro-me dela quando era miúdo e por aqui andei. Recordo muitos pormenores apesar dos anos que já passaram. A memória é algo de verdadeiramente admirável!

- O botão da máquina fotográfica está quente. É incrível como estes edifícios estão tão bem conservados. São tantos os anos e as histórias que estão gravadas nas suas paredes, nestes tectos e nestes notáveis pavimentos. O turismo pode causar mais estragos do que a passagem dos anos após as escavações. E nós que tanto gostamos de passear por estes cenários acabamos por, todos somados, fazer parte dos milhões que causam erosão e desgaste acelerado nos locais que visitamos. Já viste Bernardo, como são detalhados estes frescos que retratam a vida de Tróia. São tão expressivas as personagens que até o movimento, os sons e todos os ruídos de fundo parecem estar a sair da pintura.

A mesma ideia recomendada a cru pelos antepassados que me fizeram doer as recordações como nunca. As palavras que me transmitiram foram verdadeiras imagens de dor e desespero e ficaram-me para sempre marcadas na alma a ferro quente. A mais intimidante foi a voz do rapaz que gritava incessantemente o meu nome em latim, gritando e puxando-me pelo braço junto às colunas dóricas do jardim interior. Acabou por me arrastar dali para fora em direcção à rua dizendo que tínhamos de fugir o mais rapidamente possível para bem longe da cidade. Algo de verdadeiramente terrível estava para acontecer. E não parava de falar, gritar e gesticular muitas outras coisas que eu não consegui entender. As expressões alucinadas ligadas à intensidade do seu olhar obtiveram o resultado pretendido. Corremos os dois de mãos dadas como dois loucos para bem longe daqui.

- Então Bernardo, para onde te estão a levar estas imagens? De volta ao teu passeio de criança, de volta aos tempos de menino e à doçura das surpresas com sabor a gelado italiano? Bernardo? Estás-me a ouvir?

Está tudo a fazer sentido, e uma certeza se levantou dando-me as forças necessárias para confessar a Constança esta aflição que me vai queimando a língua e o querer.

- Estou, estou a ouvir-te claramente! E o que te vou dizer agora pode parecer estranho, uma loucura até, mas é este o meu entendimento. Já antes aqui vivi, neste local, neste exacto lugar e por mais de uma vez. Tenho a certeza absoluta que já fiz parte da vida desta cidade ainda antes de ter sido destruída pela montanha de fogo nesse longínquo primeiro século depois de Cristo. Aqui tinha de ficar quebrado o meu receio, este desmedido receio de que me possas considerar doravante um doido varrido. Não consegui mais guardar de ti este segredo, e não podia deixar passar em branco a oportunidade que esta nossa viagem nos acabou de proporcionar.

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