domingo, 17 de outubro de 2010

QUARTO ACTO - continuação IV

As selvas do espírito são por si só suficientemente complicadas para que não necessitemos de as atiçar ainda mais. A manhã está deliciosa. O meu amor deve estar apenas ligeiramente perturbado por ter voltado a esta cidade encantada depois de tantos anos desde a última vez. Sei o que sonhei na madrugada deste dia. Cada dia mais que passa eu cedo a esta ideia de que nada do que nos acontece é simples fruto do acaso. Apenas um beijo de amor saído da mais pura e cristalina das histórias faria com que esta realidade se pudesse transformar de novo na minha cabeça, para que tudo voltasse a ser como era na infância. Os despertadores tocam, a cidade e a baía acordam ao mesmo tempo. Nápoles acolhe-nos sem nunca nos fazer sentir estranhos, nem tão pouco visitantes. Todos os que trocam palavras connosco fazem-no como se nos conhecessem desde sempre. Alguns é como se apenas ontem nos tivéssemos despedido e hoje retomássemos com naturalidade as conversas da véspera. Uma pancadinha de amizade nas costas, braços abertos, mãos na cintura, sábias palavras de amizade colocadas com aquele timbre característico do “dialetto napolitano”, e o feitiço está lançado. E as vidas passadas surgem nas histórias que nos desejam contar, nos conselhos e na vontade com que nos apoiam em direcção ao futuro, e tudo isto não é mais do que o simples fruto da nossa imaginação atiçado pela magia do lugar e do momento. E o sapo falou, como na história do príncipe que necessitava do beijo salvador para o transformar de novo em gente. A crueldade esperou, expectante. Contou com a imensa paciência do amigo tempo, um aliado fiel e sempre pronto para se colocar do seu lado. Ao abrigo da escuridão da noite daquele longínquo ano de setenta e nove depois de Cristo, o Vesúvio cantou a mais quente de todas as melodias. Primeiro cuspiu pelos céus toneladas de pedras e de cinzas que foram caindo por cima da cidade e por todas as zonas ao seu redor. Depois ceifou instantaneamente a vida dos restantes habitantes de Pompeia com uma intensa onda de calor saída do fundo das suas entranhas. Foram todos mortos num raio de cerca de vinte quilómetros. Terão até as próprias almas sido fervidas e destruídas com as altíssimas temperaturas que emanaram do vulcão. As que lhe conseguiram resistir ficaram por aqui perdidas nessa memória alucinada, nesse louco momento que aqui aconteceu há mais de dezanove séculos atrás. São almas que andam perdidas e desalentadas há quase dois milénios. Bernardo sentiu a sua força quando por aqui passeou com os seus pais ainda bem jovem. A sua linda cabecinha deve ter imaginado essas coisas estranhas, essas sombras do passado, esses iluminados pesadelos que permaneceram para todo o sempre marcados com vigor nas pedras destas calçadas, destes passeios e destas ruas, destas casas com assinaturas tão perfeitas e tão belas como triste é a história que está por detrás da sua fama. A vida é bela, como é belo o nosso amor e como todos os amores deveriam ser. Não podemos simplesmente fazer desaparecer os nossos momentos mais sombrios, assim como as nossas memórias mais aterradoras. Para dar luta à mais sombria das nossas sombras, para tentar derrotar o nosso mais desalinhado pesadelo, todos necessitamos de ajuda. Eu tudo farei para que Bernardo possa encontrar de novo o pôr-do-sol para além desta sua tempestade.

Atirei-me de cabeça para o interior desta lembrança sem querer saber das implicações que este meu acto pudesse causar em Constança. A nona de Beethoven a saltar dentro de mim, a mesma que Kubrick usou para temperar a sua laranja. Não trazia comigo qualquer intenção de falar ou sequer debruçar-me sobre o meu passado e todavia aqui me fiz deslocar para chocar com ele com violência. Os misteriosos sinais por mim guardados, essas conversas misteriosas com os antigos habitantes de Pompeia, tinham mesmo acontecido. Não foram fruto de uma qualquer imaginação prodigiosa de um pequeno e assustado rapazinho. Perante a nobreza, o peso da história, a localização e a intensa repercussão que as figuras petrificadas me causaram, poderia ter visto e, sobretudo, imaginado estas vozes e ter criado diálogos para melhor teatralizar e contextualizar esse forte impacto. Constança olha para mim como se também ela soubesse que a confissão que lhe acabei de fazer é sentida e verdadeira. Foi importante descarregar parte deste peso que me atormentava a existência. Cheguei a imaginar-me louco, desvairado e necessito muito da sua companhia e do seu amor para me tranquilizar. Estou seguro que com o seu apoio poderemos tentar decifrar e até mesmo retirar algum sentido, um qualquer significado que seja desta experiência em Pompeia. O Mundo está transfigurado desde que estes rapazes olham na minha direcção, todos com a mesma vontade. Temos de nos retirar rapidamente deste lugar, temos de correr em direcção ao lado oposto da montanha que domina a paisagem, não temos um segundo só que seja para sentir o frio que este medo enorme nos provoca. Pior que sentir esse gelo colado à alma, é a quase certeza que, por muito que os nossos actos nos obriguem a agir desta forma, o resultado desta corrida está inevitavelmente condenado a um triste fracasso. Os primeiros passos que damos apressados uns atrás dos outros são desencontrados, meio desalinhados. A determinada altura da corrida deixámos de ter noção do tempo gasto na demanda. Quando já nos encontrávamos bem unidos num pelotão coeso e ritmado, lembro-me que olhámos nos olhos uns dos outros num breve instante com a dimensão da eternidade. Sorrimos em conjunto como parceiros inseparáveis. Sem dizer uma única palavra ficámos para sempre assim unidos, perpetuados pelo manto espesso de cinzas vulcânicas que nos serviu o céu sem piedade.

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