terça-feira, 19 de outubro de 2010

QUARTO ACTO - continuação V


As sombras distraem as ideias. Durante a noite sentem-se melhor os abalos que parecem não querer desaparecer. Mantém todos em constante sobressalto pois está ainda bem presente a mágoa e a imensa destruição causada no primeiro dia de Novembro do ano passado. O quadro de mestre Hieronimus falou com grande eloquência. As palavras de Fernanda relataram com toda a clareza e inusitada exactidão a expressividade das imagens representadas pelo grande mestre. Esse propósito esteve guardado em grande segredo nas vontades de todos nós, tão bem escondido como a própria pintura de Bosch. A sessão que antecipava a força global da imensa destruição estava já prevista. Faltava apenas a chave para conseguir decifrar nos seus actores o dia e a hora da imensa tragédia. Ao conjugarmos essas vontades, ao fazer com que essas intenções amaldiçoadas dessem execução a uma reforma que de outra maneira jamais seria alcançada, traçámos um caminho e um destino comum que não podemos despeitar. Não tenho a mais pequena dúvida. Nada acontece por acaso, tudo acontece por acaso! Ser-me-ia difícil conseguir dormir com esta maravilhosa conjugação de acontecimentos que se vão desenrolando à nossa frente. Fernanda necessita do abrigo escondido do pequeno bosque para com Mestre Bernardo resolver de vez todas as questões. As que desorientam e desorganizam uma alma quando lhes é vedado o mantimento devido, assim como para as outras, as mais profundas, as que carecem de uma bem mais delicada ponderação. Ao longo do que resta deste ano, teremos de conjugar os nossos esforços. Mestre Bernardo terá de terminar a sua escritura acrescentando-lhe no final a lembrança desta doce noite passada com Fernanda no coração da floresta. Não mais se poderá esquecer deste momento pois é hoje que se transformará, finalmente, no homem que necessito para os tempos que estão para chegar. Fernanda passará por uma nova fase com a maternidade que lhe está reservada. Dará fruto esta paixão eterna das duas almas peregrinas. As datas de todos os acontecimentos permanecem ocultas nas entrelinhas das estrelas. Nós, os Libertadores, continuamos a tarefa rotineira e pragmática de cortar a direito, de avançar pelo centro das avalanches ou das mais altas ondas dos mares, encharcados de justiça e sem nada temer. Grande parte do segredo reside na firmeza com que esta missão será realizada. O Mundo não deixará de avançar assinalando um a um, com regularidade e método, os bravos e valorosos Libertadores. Que façamos sempre parte activa dessas Suas empreitadas.


São mais as lutas que as mortes, mais as lutas que as mortes que irão provocar. Os homens jamais conseguirão alcançar o propósito dos deuses, jamais! Não sairão vencedores, sairão sempre derrotados, sempre derrotados pela própria arma com que julgam aplacar a ira do adversário, do adversário que não merece a sorte que lhe está reservada, nem ele nem o suposto vencedor da querela. A espada que mata ou que fere é a mesma que se vira contra o cozinheiro, contra o cozinheiro que se julga Libertador. É falso como um Judas desesperado, como um desesperado. Não sei lutar mas as minhas palavras escritas a sangue, as mesmas que vão distrair a fuga para o esquecimento, para o esquecimento para onde resvala a minha dor, a minha dor e a minha alma de Libertador atraiçoado, atraiçoado por este beco sem saída, para este beco que pinto com as cores das palavras angustiadas, as minhas palavras que me saem mexidas como nenhuma outra do centro das ideias, das ideias que não estão bem, que nem pensam, que castigam o adversário, que o matam, que matam os impostores para depois me atirarem de volta a este poço onde espero, onde aguardo, onde apanho os pedaços de morte que está próxima, que sinto tão próxima como estes pequeninos pedaços de loucura que me vão alimentando a existência.

- Tapem os narizes que o cheiro nauseabundo dos Libertadores veio para não mais nos largar! Tapem bem a boca e os narizes pois o fétido odor que vos irá envenenar as entranhas será o mesmo que vos alterará os sentidos ao ponto de jamais poderem acreditar no que vos é mostrado. Salvem-se enquanto ainda é tempo! Sejam rápidos a fugir daqui para fora, sejam rápidos, velozes como os pássaros do Fim, como os pássaros negros do Senhor de todos os invernos, de todos os invernos que ainda farão parte da vossa triste e inútil existência. Inúteis, sois um imenso bando de inúteis! Os Libertadores alimentar-se-ão dos vossos cadáveres, alimentar-se-ão das vossas últimas esperanças para vos castigarem e vos presentearem com a Loucura. O meu irmão não brinca em serviço, o meu irmão julga que a selva por onde se insinua é inexpugnável mas já conheço a sua força e a sua forma de jogar desde que a magia das suas palavras deixou de fazer qualquer sentido. Sebastião não é mais que um triste e desonrado Libertador, triste e desonrado como mais nenhum outro. Sebastião caminha a passos largos para um destino que grita de satisfação. Está finalmente encontrado o serviçal infernal, o Libertador mais poderoso e mais enganador, mais enganador. Banqueteia-se com o poder que julga dominar mas que apenas o monopoliza e algema. Tapem a boca e os narizes pois o veneno deste pérfido perfume acabará com todos vós antes mesmo do final da madrugada.

.

Sem comentários:

Enviar um comentário