domingo, 24 de outubro de 2010

QUARTO ACTO - continuação VI


Aqui senti o tempo transformar-se. Um equilíbrio quebrou finalmente o desalinho. Fernanda escondia a resposta. Era nela que estavam gravadas as palavras que serenaram a minha dor. Jamais conseguiria ser quem fui se não me entregasse nos seus braços, se não passeasse no seu colo, se não adormecesse embrulhado nas suas pernas e se não me deixasse afundar na doce maré dos seus cabelos. As minhas sombras tombaram como um castelo em ruínas. Bastou o sopro imaculado deste vento doce para derrubar as paredes que continuavam de pé. Tudo passou a fazer sentido. As inesquecíveis e atormentadas memórias recentes ficaram subitamente enterradas neste delicado corpo de mulher-menina que para sempre as engoliu.

- É fresca a candura que transmites, fresca como este espaço onde nos abrigámos. Devolveste-me em segredo e em silêncio imagens que estavam tão escondidas, tão ocultas da minha lembrança como os espaços que percorri enquanto menino.

As palavras foram derretidas, transformadas em sensações, em trocas quentes e sensuais entre dois seres que desde há muito se conhecem. Esta ligação, este segredo sublime volta a aparecer quando já não o pensava possível. Até ontem a minha vida foi escrita com um propósito, numa ténue linha imaterial e insípida. O rugido do nosso reencontro perpetuou-se pelas paredes deste abrigo. Apaixonados assim só uma única vez para todo o sempre. O corpo e a palavra desaparecem, transformam-se em sal e em suor, transformam-se em graça numa dádiva singular que não escolhe idade nem alteza. Voltámos a ser quem fomos, voltámos a recordar o ponto zero da existência. O Mundo inteiro foi revirado do interior para o exterior, desaparece o avesso e o direito das coisas. Nada existe e tudo, só agora, passa a ser real. O meu corpo está colado ao de Fernanda.

- O teu corpo é o meu, o meu o teu. As minhas dores e alegrias soam iguais às tuas. Deixei de estar sozinho, deixámos de estar sozinhos. Para sobrevivermos temos de aprender a fazer tudo de novo.

A vida inteira acontece nestes instantes. Temos de saber escutar o que tem para nos dizer, temos de acreditar na sua força única pois é nela que reside a esperança e é através dela que nos será comunicada toda a verdade.

- Já te conhecia Fernanda, sempre te conheci, os avisos eram constantes, depois fraquejaram, depois tornaram-se novamente fortes e ritmados até quase se deixarem de escutar naquele dia. Deixei de me preocupar, deixei que o teu rosto me fosse sendo comunicado nos sonhos, ao longo das viagens que nunca me trouxeram até ti, ao longo desta vida que me foi salvando sempre que me anunciava estar para breve a tua vinda. Claro que não acreditei. Nunca fui pessoa para acreditar no poder bizarro das palavras surdas, dos sonhos cinzentos, das contínuas formas de realçar o absurdo e muito menos neste Amor eterno que me aparecia e desaparecia vezes e vezes sem conta, empacotado em misteriosas luzes azuis no meio de tantos sonhos nublados.

O dia vai aparecendo devagar nas paredes junto à entrada do refúgio. Não sentimos o frio nem a humidade que vem de todas as suas entranhas. As mais escuras foram evitadas. Mantivemo-nos nesta perpétua ligação num espaço onde apenas os nossos dois corpos se conseguiam movimentar. Fernanda volta-se, abraça-me mais uma vez com os olhos brilhantes e a alma perfumada, percebe naquele carinho a importância que este momento tem nas nossas vidas. Beija-me ao mesmo tempo que os seus dedos passeiam pelo meu rosto. Observa com ternura as marcas que o tempo semeou por mim, as mesmas marcas que me diz conhecer desde que se lembra de existir. Deita a cabeça de lado sobre o meu peito e escuta este seu coração.

- Não morreste aqui Bernardo. Não foi aqui que a morte te veio encontrar. Aqui renascemos, aqui nos voltamos a descobrir uma vez mais. Tu sabes que os caminhos desta vida são obrigatoriamente diferentes das outras, das que vivemos e das que ainda faltam ser por nós vividas. Sempre que isto nos acontece, ficamos com este estranho sabor na boca, para além de acordarmos com ela tão seca como um pedaço de papel velho e ressequido. O teu coração está forte. Bate tão forte e tão intenso como batia quando nos encontrámos pela primeira vez. E nem dessa vez ficámos com a sensação de ter sido verdadeiramente a primeira.

O rosto de Fernanda volta a subir até os seus olhos voltarem a comunicar com os meus. No meio deste desalinho, a vida começa a fazer, finalmente, um pouco de sentido. A sua mão delicada toca-me na boca, manda-me calar com a ternura do gesto. Passado, presente e futuro são totalmente quebrados. Repetidamente, vezes e vezes sem conta os vencemos através desta paixão. Os olhos fecham-se e os nossos corpos alinham-se, voltam-se a unir, voltam uma vez mais a ser um só e a sentir que o tempo não existe.

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