Avançar pelas ruas de Nápoles é um autêntico desafio. Tentamos ficar atentos ao trânsito e ao percurso mas não existe maneira de deixarmos de ser atraídos para a beleza da cidade. A saída faz-se por uma pequena rua de sentido único onde se encontram muitos carros mal estacionados e onde tantos outros procuram desesperadamente por um qualquer lugar. Neste período de férias acabou por ser uma sorte encontrar este hotel com lugares cativos pois poupamos uma série de dores de cabeça ao tentar encontrar local para deixar o carro. Chegamos ao largo junto à via Vitorrio Emanuel III e surge-nos imponente e principesco o Castel Nuovo. Avançamos para a praça do município e o caos do trânsito citadino impera. Ao chegarmos à avenida Americo Vespucci mal se consegue avançar pois o pára-arranca é uma constante. A rua é empedrada como em muitas das nossas cidades e vilas e torna-se desagradável se nos mantivermos assim por muito tempo. Afinal, acabou por não ser muito complicado descobrir a entrada da auto-estrada A3 Napoli-Salerno que nos levará até Pompeia. Razão tinha o simpático empregado no hotel que nos deu uma estimativa de aproximadamente quarenta e cinco minutos para conseguirmos chegar até lá! Constança está mais preocupada a analisar o pequeno mapa da cidade e da costa Amalfitana para onde seguiremos depois. Fica muito concentrada durante as viagens e bebe todos os momentos dos passeios com os olhos brilhantes de emoção. O Vesúvio começa a parecer cada vez maior e acompanha-nos durante todo o percurso em auto-estrada. Ao sairmos para Pompei avançamos pela via Plinio carregada de poluentes cartazes informativos para os turistas, dando conta de pensões com quartos, hotéis, pousadas, campings, restaurantes e todas as demais actividades turísticas da zona. Foi aliás junto ao camping Spartacus que tivemos de inverter a marcha pois a melhor rua para estacionar e entrar na zona das ruínas ficava para trás numa cortada à esquerda em que continuámos em frente. Tem o bonito e sugestivo nome de via Villa dei Misteri, a rua da villa dos Mistérios. Este é, aliás um dos conjuntos arquitectónicos mais bem conservados, com frescos espantosos que nos fazem voar no tempo até esses longínquos anos em que se vivia em comunhão com deuses dionisíacos e com rituais de preparação para matrimónios romanos que ainda hoje carecem de uma correcta interpretação histórica. Adquirimos as entradas com antecedência e resta gozar agora da fabulosa cidade em ruínas. Constança não o sabe, mas quando aqui estive ainda muito novo, fiquei quase tão petrificado como as estátuas humanas que o Vesúvio se encarregou de cristalizar para a eternidade. Era pequeno mas nunca mais esqueci as vozes que me chamaram e me iam dando conta dos segredos daquele trágico dia como se procurassem um amigo para poder dar vazão a tanta dor. Jamais fui capaz de dizer isto a alguém. As palavras andaram às voltas durante alguns meses na minha cabeça e ainda as recordo hoje quase como nesse ano em que aqui estive de visita com os meus pais. Não é fácil descrever uma sensação dessas, ainda para mais sendo tão pequeno como era na altura. Lembro-me vagamente de meu pai achar que eu andava estranho por ter ficado muito impressionado com as estátuas que tinham sido pessoas verdadeiras apanhadas de surpresa pela erupção do gigantesco vulcão. Mal podia ele imaginar que essas estátuas comunicaram comigo como se me conhecessem. Uma delas até o meu nome sabia, várias vezes me chamou Bernardus e tinha um timbre de voz melodioso, igualzinho aos que os realizadores gostam de ouvir nas personagens angelicais ou fantasmagóricas dos seus filmes. E acabou por ser essa estranha sensação de proximidade e de pertença que me causou esse forte impacto, mais ainda do que ver de perto as estátuas outrora gente. Era como se eu começasse a sentir uma estranha familiaridade e sensação de pertença com este local onde nunca antes tinha estado. Dei inclusivamente por mim a percorrer algumas das calçadas e ruelas das ruínas como se sempre por elas tivesse passado, como se fossem estas as ruas que eu tão bem conhecia e que todos os dias usava para ir até à escola e depois voltar a casa. Nada disto me tinha alguma vez acontecido, e foi assim grande o choque, tão novo que era. Fiquei a perceber que existem na vida momentos em que as coisas normais do dia-a-dia desaparecem para dar lugar a outras bem menos explicáveis, e que delas temos medo de dar conta e evitamos tentar explicar o sucedido mesmo às pessoas que mais nos adoram, aos próprios pais que tudo sabem, ao amigo mais especial, até mais tarde a quem abrimos o coração de par em par.
- Bernardo, é por aqui, anda! Olha, está ali a indicação da entrada e já se forma uma pequena fila. Não te esqueças da máquina fotográfica, fecha bem o carro e vem ter comigo que eu vou já andando antes que aqueles turistas todos nos passem à frente!
Constança, que quase não falou durante o trajecto de Nápoles até aqui, dá agora as instruções para que se dê início à nossa jornada matinal de visita. Estou com alguma expectativa do que nos estará reservado durante a visita. Será que mesmo agora, passados todos estes anos, a minha cabeça voltará a pregar-me a mesma partida e vozes surgirão dentro de mim?
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