segunda-feira, 19 de julho de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação XII


Não existem antecedentes que me façam pensar numa outra solução que não esta. Não entendo nenhuma das minhas vontades. O sabor da vida aventurou-se por outras paragens e cansou-se desta minha inquietude. Os desejos de muita morte, de muita destruição serviram-se de mim como o leito de um rio ávido da água que o habita. A escuridão e o ruído surdo dos animais que vivem nesta gruta começaram a invadir-me os medos. Escuto-os agora ampliados até à exaustão. Não compreendo por que me atingiu esta súbita ideia de fuga e este receio de que algo de muito mau estaria para me acontecer. Já não prevejo o próximo momento nem adivinho acontecimentos futuros com a regularidade destes últimos meses. Ao coração colou-se este sentimento novo que me enlouquece e me altera. Os últimos dias passados na companhia de Bernardo não foram iguais aos do momento de destruição da cidade. A surpresa desse encontro foi substituída por este crescendo de paixão e de amor que não sabia ser possível sentir. As nossas ideias e palavras seguiam idênticos caminhos, idênticos entendimentos sobre coisas tão simples como o calor dos dias ou sobre assuntos mais complexos como esta incompreensível capacidade que está escondida nos nossos sonhos. Guardar este sufocante peso no peito começou a ser muito doloroso, bem mais do que alguma vez fui capaz de supor. O seu rosto tinha-me sido revelado em sonhos bem antes do momento em que nos encontrámos pela primeira vez na grande praça no dia calamitoso. Os piores receios abalaram de mim nesse exacto instante, os seus olhos chegaram para me avisar de que não mais seria necessário recear a morte ou a dimensão da dor que ela provoca. Percebemos a força contida naquele breve instante em que os nossos olhares se ligaram. Já tínhamos sido ou iremos ser um só algures neste caminho. Ao fugirmos de tudo, ao cavalgarmos para lá daquelas sepulturas e chagas, procurámos apenas a chave dessa porta, tentámos somente descobrir onde estaria escondida a passagem secreta para esse outro lugar, para esse outro instante onde pertencemos um ao outro sem limites ou barreiras.

Dei por nós a voar no seu cavalo para longe de toda aquela loucura como só nas mais fantásticas óperas pode acontecer.

Ao colar-me ao seu corpo voltei a sentir-me segura, tranquila e em paz com tudo o que tinha até então ousado desejar.

Passeei as minhas mãos ao seu redor onde me abracei. Deixei as minhas mãos passearem no seu corpo até que os braços o enlaçassem por completo. Chegou-me o cheiro doce da sua pele e deixei o rosto roçar pela maciez dos seus cabelos. Estreitei o abraço, e quando o meu corpo sentiu o calor do seu, aconcheguei a face no leito das suas costas e nele procurei refúgio como uma criança perdida. Fechei os olhos para melhor sentir a verdade, ainda que por breves momentos, daquilo que para mim não poderia ser senão um sonho, um sonho que como todos os sonhos, bons ou maus, acabam sempre por ter o seu fim.

Foi então que de cansaço e paz desfaleci e deslizei pelo dorso do corcel em direcção ao silêncio e à escuridão.

Os seguidores não conseguem dar conta do recado, não descobrem os possíveis caminhos por onde Fernanda possa ter avançado e andamos por aqui às voltas sem obter resultados. O ministro abandonou o local mas as suas ordens foram bem explícitas. Só sairemos daqui depois de encontrarmos Fernanda. Os ramos, as muitas silvas, o mato denso e as poucas clareiras que se vêem no centro destas frondosas árvores não dão qualquer sinal da sua passagem, nenhuma indicação de que, por aqui, alguém tenha passado recentemente. A jovem desapareceu como um fantasma, parece ter sido engolida pelo bosque ou então ter-se-á transformado numa espantosa árvore e está divertida a rir-se de todos nós. Não encontro outra explicação para esta surpresa. Gostaria que estes ajudantes desaparecessem, gostaria que este dia fosse um outro que não este, gostaria que Fernanda e eu pudéssemos estar finalmente juntos num lugar afastado de tudo e de todos, a sós e em paz. As palavras que lhe escutei nos dias após a queda foram tremendas e tiveram um impacto profundo na minha maneira de encarar sonho e realidade. Foram demasiado certeiras, surgiram do seu mais profundo íntimo e pelo seu conteúdo desmascararam todas as minhas visões e todos os meus dogmas. A vida abre de quando em vez estas surpreendentes portas pelas quais nos atrevemos a avançar. Transformamo-nos para sempre no que já éramos sem o saber, no que já fomos mas que nos era impedido de recordar ou no que seremos sem termos ainda acontecido. Num instante tão minúsculo quanto breve, mas suficientemente assustador, ficamos paralisados, boquiabertos e sem capacidade de reacção.

Nada nem ninguém voltará a ser visto como era antes.

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