sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação VIII

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Deixo para os outros a destemperança dos pequenos momentos. A luz fica mais ténue e já não chega para enxergar para lá de três passos. Os momentos mais aflitivos passaram. Os sons deixaram de se fazer escutar por debaixo da terra. Desta feita ninguém gritou ou correu em busca de salvação. A temperatura do momento não subiu em demasia e o susto não gerou pânico, apenas um ligeiro sobressalto. As poucas sobras de esperança, largadas pelas ruelas ao vento, abandonadas como pedacinhos de aflição indesejada, parecem ter sido todas arrecadadas pelo senhor Ministro. Alguém sob a sua voz de comando as recolheu, tratou e amontoou nalgum canto do palácio semi-arruinado. Carrega consigo essa força, dando-a a conhecer através do seu andar ligeiro e posse altiva, pela maneira natural como encontra as palavras mais preponderantes para todas as conversas e no seu olhar intenso e penetrante. Os segredos que guardamos são abalados, estremecem perante a frieza objectiva com que nos parece ler a alma e roubar os nossos íntimos pensamentos. Descobri esta capacidade no Ministro…

-Desejei o insuportável e agora expurgarei todos os meus segredos sem contudo fazer a mais pálida ideia dos seus porquês. São bem estranhas estas formas brutais que nos saem em segredo da alma, alinhavadas por tantas incertezas, construídas por todos os receios, abandonadas por todas as angústias. Não escreverei mais enquanto assim me atormentar o receio. Fiz desaparecer com rapidez todas as folhas escrevinhadas que se amontoavam em cima da pequena mesa mal iluminada. Aqui escrevi mais do que devia, aqui fiz o relato dos segredos, os meus e os seus, e deles não me consigo arrepender, mesmo se de mim saíram sem qualquer ordem, mesmo se o tempo e esta estranha voz me alimente e afogue com mentiras. Mas as suas mensagens, tudo o que para aqui foi arremessado, eram dotadas de uma tal força que a surpresa inicial foi logo substituída pela razão e pela pena.

Como seria possível deixar cair no esquecimento tanta informação, tanta coincidência de factos, tantas similaridades e tantas histórias de futuro? Jamais me perdoaria, como jamais me perdoaria se estes papéis caíssem agora em mãos erradas. O clima está alterado, as capacidades de análise seguramente modificadas, e apenas o tempo pode apaziguar e trazer segurança aos nossos dias. Mais tarde tentarei decifrar estas estranhas palavras, todas nascidas na escuridão do seu tempo apagado.

- Mestre Lefébvre e Mestre Bernardo, tenho imensa honra de vos anunciar a visita do Ministro de el-rei, a mais importante e diligente figura do nosso país nestes tempos conturbados. Deixai que vos diga, em antecipação, que tudo aquilo que dom Sebastião deseja é a obtenção de respostas sobre alguns acontecimentos que lhe foram comunicados ao longo desta última semana.

Tantos senhores, tantos sábios senhores reunidos neste quarto tão pequeno e sombrio. O que terá acontecido de tão importante para se juntarem estes cinco homens em redor da minha pequena figura, fitando-me sem deles sair uma única palavra? Que mal terei provocado, que sinais terei induzido, porque que razão passeiam os olhares pelo meu corpo? Lembro-me da queda do cavalo branco, como se estivesse agora a acontecer. Lembro-me do lento deslizar do meu corpo pelo corpo do animal que avançava em galope veloz saltando penedos e valas.

- Quero ficar a sós com Mestre Bernardo, por favor!

Directa e impetuosa, a vontade do Ministro agita eficazmente as acções de Lefébvre, de Mestre Dufau e de Constâncio que, obedientes e cumpridores, saem da sala com ligeireza. Não evito este pequeno tique nervoso que me agita o braço direito em direcção à perna, coçando mais vezes do que o justo um joelho bastante avermelhado.

- E pensar que nesta pequena e débil figura moram as agitadas e surpreendentes forças do destino? Mestre Bernardo, que podemos comparar às estranhas e misteriosas forças do silêncio? O que acha que se encontra escondido numa cabecinha ainda assim tão jovem e assustada, tão pouco dignificada na sua indigna condição de ser humano da populaça, sem a sorte dos reis e dos príncipes, daqueles a quem quis o destino dotar da felicidade da bonança, das virtudes da riqueza, do carácter sensível de um grande compositor ou de um castrati abençoado? As palavras senhor Bernardo, sempre as palavras! São elas que traduzem em todo o seu esplendor as imagens, dando delas a notícia, trazendo-as para junto de nós, colocando-nos no centro das acções, no palco das novidades, no centro do rebuliço e da agitação! É isso que eu procuro de vós senhor Bernardo, é isso mesmo que procuro de vós.

Abrenúncio!, Nada faz sentido, ou antes, talvez tudo comece agora a fazer todo o sentido! O senhor Ministro não pergunta, sabe muito bem daquilo que fala. O senhor Ministro sabe bem demais sobre tudo aquilo que aqui nos veio falar.

- Senhor, peço-lhe perdão pela minha surpresa. A sua chegada, só por si, foi motivo suficiente para nos deixar neste estado. Sei muito pouco sobre o que acabou de nos dizer. Sei, porque assim acredito, que a razão e a certeza dos factos são o mais importante de todos os bens. Sem elas será sempre muito difícil encontrar explicações lógicas e sustentadas sobre tudo aquilo que nos rodeia, sobre quem somos ou até sobre quem nos viremos a tornar.

E para os sonhos, para a memória de todos os sonhos que acabam por se transfigurar em realidade sem que um único alicerce de objectividade os sustenha? Ai Bernardo, que estes pensamentos não te traiam agora na presença deste ser humano tão iluminado.

- Amigo Bernardo, tomo como válida esta minha constatação e assim o passarei doravante a tratar. Nada do que aqui me trouxe tem directamente a ver com aquilo que me foi comunicado pelo fogoso e obstinado Manuel Constâncio. Aliás, as palavras do jovem barbeiro trouxeram-me vontades impróprias, pouco dignas a um governante. Este tipo de figuras funcionam e sempre funcionarão da mesma maneira, e isso nem sequer merece a dignidade da nossa indiferença. Fiquei contente pois durante anos alimentei a esperança de não ser caso único nesta terra alucinada. As palavras do barbeiro, mesmo tendo chegado nestes tempos terríveis e tão negros da nossa história, tiveram o condão de me proporcionar uma enorme alegria. Acredite meu caro amigo, foi mesmo isso que aconteceu! E agora? O que iremos nós fazer daqui para diante meu bom amigo? Chegou a vez de me dar de si já que de mim fiz relato que chegasse.

Amigos? Todos nós temos segredos. Todos nós, como se já nos tivéssemos conhecido sem nunca antes nos termos encontrado. E esta voz intensa trouxe-me de volta aquelas vozes que me acompanharam à distância quando me perdi ainda novo por Pompeia.

- Amigo, pois assim seja senhor Ministro. Raros são aqueles que, como tão eloquentemente acabou de o fazer, depressa nos fazem sentir desta maneira. O contrário seria colocarmos em cima da mesa a franqueza insustentável da frágil normalidade.

Que será de mim? O que desejará este homem que tem tanto de inteligência quanto de mistério? Não terão sido as palavras segredadas durante o meu sono perdido que acabou por fazê-lo deslocar-se até aqui?

- Nem mais amigo Bernardo, nem mais! Nada mais deprimente que fugir das verdades refugiando-nos nessa falsa e insustentável sensação de frágil normalidade. E ganhei a sua atenção sem que me possa acusar de ter sido falso ou brusco ou de ter feito uso de títulos ou posição. Seria uma via impensável. Respeito-o ao ponto de ser incapaz de o violentar com tamanha malfeitoria. Por isso mesmo, de agora em diante, a conversa tem de seguir um rumo necessariamente diferente, meu caro amigo. Sabe disso tão bem com qualquer um de nós aqui presente neste quarto.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação VII


- Amigo Bernardo, descobri que o senhor Ministro de el-rei se prepara para nos visitar. Os amigos que julgava ter assobiaram a novidade à corte com maior rapidez que a propagação de uma desgraça. Não foram minhas as palavras que comunicaram o que quer que fosse. Essas locuções da pequena senhora durante o tempo em que permaneceu adormecida devem ter causado espanto a mais gente do que supúnhamos. Apesar de só ter por aqui passado pessoal do hospital, colegas, o Mestre Dufau e Manuel Constâncio, alguém deve ter conhecido o descontrolado vocabulário da senhora e dele feito notícia. Tal não será de estranhar dada a complexa conjuntura destes tempos.

Mas que conta este senhor médico? Terei falado durante o tempo em que estive esquecida do mundo e da consciência? E que palavras terão sido essas que fazem com que tão importante figura nos venha ver? Mal acordei e já se preparam mais novidades não comunicadas. Perdi realmente a capacidade de antecipar os acontecimentos que a perícia dos sonhos me dava a conhecer. Isso é bom, isso é mesmo uma óptima notícia. Os últimos desses sonhos consentiram nas minhas vontades e agora apenas consigo escutar os sons de uma música bem diferente das que saíam das janelas do palácio tocadas pelo senhor Scarlatti. Aconteça o que acontecer, permanecerei no mais profundo dos silêncios, na esperança de que nenhuma lembrança perversa ou escuro pensamento tenha sido comunicado por mim por estes dias. Sinto um arrepio acompanhado de dúvidas e incertezas. Seriam essas mensagens o que o médico escritor registava naquela escrita tão nervosa? Terá ele o passaporte para a minha desventura? Estará algures naqueles escritos a minha negra confissão? Se assim aconteceu não me restará qualquer esperança de vida. Seguramente merecerei o mesmo fim dado a todos aqueles que se diziam ou faziam passar por magos do destino, apesar de tal nunca me ter sido transmitido em cores cinzentas.

- Que diz amigo Lefebvre? Mas como assim? Nem um só segundo de paz aconteceu desde que abriu os olhos e já aqui se apresenta o soldado da nação? Terá sido o próprio Mestre Dufau a dar esta notícia ao Ministro. Veremos como será possível salvar agora o que resta deste desejo?

Malditas as palavras, malditos os desalinhos e os vaticínios, todos correctos, de cada palavra que ia saindo da sua boca adormecida. Maldita a hora em que comuniquei estes assuntos ao amigo Lefebvre. Mas como teria sido possível aguentar dentro de mim este tão grande assombro? Os dias e as noites não param de nos atormentar com doses inimagináveis de destempero, como se a realidade se tivesse evaporado para todo o sempre numa estranha nuvem de cristal. Vou esconder rapidamente a minha escrita, encontra-se demasiado quente para os olhos de um sábio. Não arriscarei esta vida por um só instante, e tudo farei para conseguir explicar as estranhezas a todos. São simplesmente, um conjunto de estranhas coincidências, apenas simples estranhas coincidências sem a menor das importâncias. E que dizer deste pequeno exemplo:

“Voámos e fomos recebidos por homens estranhos que nos perguntaram como tínhamos conseguido sobreviver. Caímos sem saber o que dizer. Os senhores convidaram-nos para entrar, indicaram-nos umas cadeiras onde nos sentámos e serviram-nos uma refeição quente e saborosa. São todos amigos de infância, amigos de longa data, e lembram-se de como tudo era naqueles tempos distantes em que o rio lhes resolvia os problemas. Eram tantos e vestiam roupas brancas muito compridas, manchadas com desenhos feitos de sangue. Um grande colar luzente e negro, algo retorcido, estava pendurado ao peito de todos eles. Olhavam-nos com bastante alegria, dos seus olhos conseguíamos descobrir esse sentir, mas no fundo das suas almas a esperança estava ausente. Lisboa, uma Lisboa tão estranha quanto gigantesca, uma cidade com a dimensão do próprio mundo, transformada na verdadeira visão dos infernos. Uma gigantesca massa humana sem nenhuma comparação com o número de vidas que se finaram neste horror de agora alinha-se ao longo da mais inacreditável mistura de ruídos, desmoronamentos, berros, aflição, dor, destruição, cheiros, horrores e milhares de rebentamentos que se transformam imediatamente em negras nuvens de fumo e escuridão”. Como será possível tentar encontrar explicação para estas visões, para estas histórias com contornos de medo que saíram noite após noite, dia após dia da sua boca adormecida? Esconderei de todos as imagens e as lembranças destes mistérios, esconderei de todos as memórias agora regressadas e avivadas dessa minha longínqua visita a Pompeia.

Por agora será mais razoável omitir as palavras do senhor Lefebvre ao explodir pelo hospital antes da loucura. Se o senhor Ministro considerou serem motivos importantes os relatos das palavras atormentadas da rapariga, são certamente fundamentos mais que seguros e bizarros os instantes anteriores aos do dia da tragédia. Assim terei um lugar cativo e honrado nos propósitos futuros do senhor Ministro, já sabe que poderá contar sempre com a minha lealdade.

- Mestre Dufau, seria talvez importante referir ao senhor Ministro quais as nossas necessidades mais prementes para poder acudir com eficácia a tantos magoados. Seguindo as suas instruções, alinhavei um conjunto de medidas e de sustentos, de materiais e de humanos recursos para poder fazer valer ao Lisboetas, conforme interesse expresso por Sua excelência o senhor Ministro.

Sábia e incisiva figurinha esta do Constâncio, sempre pronto a defender os seus interesses fazendo-os passar pelos do povo massacrado. Por muito que lhe custe, essa são as novas incumbências de Mestre Bernardo e não mais as suas.

- Diga-me Mestre Dufau, é possível decifrar as palavras mais extremas que saíram da boca da pequena senhora? Serão assim tão arrebatadoramente misteriosas? Pelos relatos romanescos que me foram comunicados, começo a sentir uma estranha vontade de que tudo não passe, afinal, de mais um logro patinado com as verdes tonalidades da loucura. Mais vale que assim seja! Não gostaria de ter de sanar maleitas tão profundas nestes tempos de pavor. Já me chegam as aprazíveis paranóias de el-rei.

Ouço o ruído de passos cada vez mais próximo de nós. Não há mais tempo a perder. As folhas destes relatos ficarão arrecadadas, bem afastadas dos olhos audazes que nos chegam em visita.

- Um mistério senhor Ministro! São, seguramente, um verdadeiro mistério!


terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação VI

Imagens, parte de nós, parte do tempo, que valem pelo que valem, pelas decisões e pelas opções, pelas pessoas, pelas formas como alteram a nossa rotina e a maneira como vemos o mundo, o de agora e o do futuro. É do futuro que se trata quando tentamos dar um novo rumo à cidade e aos que sobreviveram à tragédia. Todos estes desenvolvimentos catastróficos se aliaram para nos convocar. Irei criar os programas e as equipas necessárias para requalificar toda a capital. Transformarei este choque numa nova visão deste país, um novo perfume e um novo sorriso abrirão esta cidade para as águas do Tejo, para o mar e para o mundo. Transformaremos as consequências destas ondas de choque em algo de muito benéfico para o nosso futuro. Será uma aventura de criatividade e renovação feita com orgulho e nascida das aprendizagens e dos negros contributos destes reflexos de dor. Iremos unir este trágico passado com a remodelação iluminada e brilhante do nosso futuro. Um desafio, uma aposta, um mercado de esperança e confiança que iremos reabrir ao levantar de novo toda a arquitectura da cidade, toda a sua área comercial e mercantil, o seu porto, as suas igrejas e catedrais, a sua ópera, os hospitais, e este em particular, e uma luz nova se erguerá destes escombros que começámos já a fazer desaparecer.

- Aqui me desloco em segredo para conhecer essa rapariga misteriosa de que Manuel Constâncio me deu notícia. Mestre Dufau, sabe que não tenho como hábito perder tempo com futilidades. Se aqui me aventuro é para que tudo se passe sem nenhuma publicidade. Qualquer palavra pode causar incómodo a el-rei e ele encontra-se muito ocupado a alimentar os seus pavores. Nas alas dos loucos e dos arrependidos seguramente se aliaram as forças para lhes abrirem menos comandos miseráveis ao enfrentar estes mistérios destruidores. Frequentam uma realidade tão alterada que a honra da verdade não marca presença nem lhes carrega o corpo com grande responsabilidade. As maleitas da alma são inexplicáveis, verdadeiramente inexplicáveis, não é assim caríssimo Mestre Dufau?

- Assim é, assim nos vai parecendo digníssimo Ministro.

São os libertadores, não são monstros do Inferno que se levantaram para nos levar. Apontam novamente as suas armas para as profundezas das entranhas da terra, procuram destruir as rotinas para carregar milhares de vidas e alimentam-se de toda aquela esperança. As paredes das catedrais e dos palácios servem-lhes de refeição, e depois engolem as almas dos que se aventuraram para lá das paredes, das fachadas, dos telhados, das ruelas e calçadas. Os visitantes fazem de tudo para tentar entender a beleza destes processos, fazem de tudo, de tudo. Nada conseguem e depois, e depois deixam-se enganar, deixam-se enganar e são enganados pelos sinais dos dias, pelos sinais dos dias e das noites, pelos sinais da força da escuridão e pela força com que a luz penetra pelas gretas e pelas fendas das almas de todos os visitantes. Os libertadores servem-se de visitantes como nós, orgulhosos, orgulhosos e sujos, tão sujos como repulsivos, repulsivos e incómodos para visitantes impenetráveis, para aqueles visitantes que olham, que fitam e estudam sem enxergar. Mas este Ministro de el-rei é inspirador, aparenta uma inultrapassável vontade e a casa onde habita o seu saber, onde habita a sua sabedoria, é uma que aparenta conhecer aquilo que se adivinha. Recebe conselhos gratuitamente dos libertadores, atiram-lhe migalhas de perícia, de uma aveludada e polida sabedoria, com que intenção, mas com que intenção?

- Senhor Ministro, senhor libertador das profundezas, das profundezas, senhor visitante, a sua sombra deixa adivinhar tudo aquilo que esconde, que esconde, e que a sua sombra deixa espalhado pelo chão empoeirado com a ousadia de um profeta, de um profeta libertador! O senhor irá encontrar-se com a sua própria história e nela construirá um trilho agitado, com eficácia e muita ajuda dos visitantes, palavra de Ramiro, palavra do visitante Ramiro. Dava tudo para poder visitar de novo a praça naquele dia do desastre. Nada ficou como era. Como seria agora a sua esperança sem a presença forçada destes libertadores, dos libertadores das sombras e dos pecados. Agora o senhor Ministro está entusiasmado, sente essa força subir pela sua vontade como uma ameaça do destino, como uma ameaça forçada que deseja controlar mas que lhe irá fugir como foge a todos os visitantes que se julgam libertadores. Amanhã será um dia igual ao de hoje, igual a hoje, mas com as cócegas da selvagem capital destruída a arrasar o futuro dos seus planos.

São quantos os loucos atiçados que por aqui acabam a filosofar? Pior que uma alma destemida e alucinada que sempre caminhou do lado de lá da razão é aquela que já sentiu o calor da razão e que se desorganizou ao atravessar o patamar arruinado da esperança.

- Não faça caso destes loucos senhor Ministro, não faça caso! São totalmente inofensivos e as palavras que lhes saem pela boca são como pássaros perdidos na paisagem desalinhada da nossa querida cidade.

- Mestre Dufau, não lhe conhecia esses dotes de poeta! Sabe que tudo o que sai da boca de qualquer mortal é sempre motivo de consideração. As ideias mais espantosas, por vezes, são carregadas pelo próprio vento, pela luz da ansiedade, ou pela voz alucinada de um qualquer louco contagiado com as artes desfocadas da oratória. Não será este o caso caríssimo Mestre Dufau, não será este seguramente o caso!

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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

SEGUNDO ACTO - continuação V

- As marcas que se sentiram ao encerrar as fronteiras desta ilusão tremenda deixaram vincadas cicatrizes nas almas. É impossível viver como dantes. São tremendas as imagens de crueldades, são dolorosos os relatos de trágicas tormentas e são em tão grande número os corpos que repousam nas profundezas do leito do Tejo que jamais se olhará o presente sem sentir o pavor destes instantes passados. Não se podiam perpetuar por mais tempo os cheiros e os horrores atrozes das visões proporcionadas por tantos cadáveres abandonados e destroçados.

Estas palavras do bom amigo Lefébvre dão alento e razão na minha vontade em escrever.

- São estas as horas que favorecem a escuridão e foi ela que por aqui passou para tecer os seus interesses. Nada se compara à existência da loucura assim como nada se compara ao doce néctar do delírio. Nestes momentos, nestes arrepiantes instantes, a vontade de ser desaparece, deixa de fazer qualquer sentido. Hoje, tal como ontem, somos outros, não mais os mesmos.

Desalinhados com a aparente e ilusória sensação de acalmia, as vidas de todos seguem um propósito maquiavélico, escondido algures nas minhas vontades insanas e duvidosas. Deixei-me guiar por um fogo incontrolável, um que tomou conta de mim usando a minha parte mais infame. Vendeu-me todo o seu veneno, alargou o seu calor até que nada mais restasse para arder. Subiu com tanta rapidez pelos meus sonhos que já não era eu a tomar conta do desejo, assim acredito. Deixarei de falar, deixarei de falar até que esta realidade desapareça para a mais invisível das esquinas do tempo. Desapareço pelo prazo de uma vida, desapareço por um tempo igual ao de duas ou três vidas. Deixem-me descansar desta doença cruel que me trouxe a mais ingrata das virtudes, o mais insano dos poderes, a mais estéril das esperanças. Poder moldar o porvir através de um incómodo sonho sem cor é a mais perfeita de todas as formas de crueldade. A mente não resiste ao doce calor dessa loucura, não sabe suster tanta abundância, tanta chama acesa no coração e na alma. Uma voz dentro de nós grita, comanda-nos a vontade dizendo-nos o que fazer, o que sonhar e o que manietar, como se fossemos deuses a comandar o mais nefasto e poderoso de todos os domínios. Atira-nos depois violentamente para fora desta morada sombria, até que tudo acontece, já a cores, já com a luz a brilhar em todas as estruturas.

Ao desfazer-me em vontades, em sonhos novos, em tentativas de alterar o inalterável, percebi que não mais funcionava essa ambição. Não houve tempo para tornar viável um novo entendimento com as negras imagens dos sonhos, acabar de vez com as minhas desagregadas intenções. Ao perceber que tudo estava a acontecer pela acção desmedida e irreflectida das minhas visões, corri em todas as direcções e em nenhuma. Corri de todo aquele inferno que ajudei a crescer, corri pelos becos despedaçados e pelo centro de tantos mortos semeados pelos céus, corri na vaga esperança de ser engolida pelos destroços, pelas mãos dos assassinos e ladrões, pelas águas do Tejo que acudiam na limpeza das misérias. Corri para encontrar novamente a noite em que estas loucuras envenenaram as imagens lançadas à toa pelos meus mais sórdidos pesadelos, corri para sentir que dormia e que tudo se passava ainda bem dentro das minhas ideias. Corri com os pés a desenharem no chão a vontade em não voltar a acordar. Corri para desaparecer, para tentar afastar de vez este pedaço de sonho construído com a mais negra das minhas vontades.

Corri para procurar um dia em que eu nem sequer ainda fosse gente neste mundo que sonhei destruir. E já lhe apanhei o jeito, aprendi com a facilidade de quem descobriu a palavra ou como se começa a andar. Primeiro, as novidades do instante em que tudo acontece e que nada se sente. É tudo tão natural, tão seguro, como se não existissem quaisquer barreiras ou degraus para ultrapassar. Flui como um pequeno pedaço de nós, como se nos pertencesse, até que uma pedra do diabo nos bate com violência deixando-nos à beira do abismo da perdição. E a única ideia que nos vai passando pela cabeça ao assistir a estes primeiros sonhos acinzentados é a de caminhar em frente na direcção daquele abismo adocicado que nos foi servido de presente. Ali se encontra a razão da nossa existência, aquela que nos transformará na própria luz do Sol.

Parei de correr ao olhar para o rosto do senhor médico escritor, para aquele olhar perdido e admirado que me fitou. Era o mesmo homem que me visitou no mais estranho dos momentos do último dos sonhos. Ali estava a figura, o mesmo rosto, o mesmo olhar perdido. Aqui está agora com o amigo e companheiro, seguramente aguardando por respostas, tentando, tal como eu, tal como todos nós, entender estas estranhas arquitecturas do tempo, estas manipulações alteradas que abrem brechas gigantescas na nossa capacidade em discernir todas as coisas.

Em tudo o mais permanecemos estranhos, mas somos seguramente menos estranhos do que a maioria dos nossos familiares e amigos. Partilhamos esta estranheza desconexa por nos ter sido dada a conhecer uma das partes invisíveis do rochedo das almas. O seu olhar não enganava e no meu entendeu, com rapidez, a minha estranha demência.

Guardada naquela cavalgada que nos transportava para longe de tudo e de todos, estava a minha tentativa em dar um fim a este assunto. Não irei conseguir suportar por muito mais tempo as cores da realidade, e jamais voltará a vestir-se com as cores das minhas palavras.

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