sábado, 8 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação IV

Tantos mortos, tanta gente aos pedaços, tantas casas caídas e tantas coisas boas perdidas e espalhadas pelo meio dos pedregulhos e poeiras. Vou apanhar todo o ouro e demais coisas de muito valor que consiga resgatar aos mortos e moribundos. Não vão ser só esses bandidos e assassinos que acabam com a vida de muitos feridos a levar tudo o que por aqui se encontra. Sou bem pequeno para me fazer chegar aos sítios mais escondidos das desabadas fachadas e não tenho medo da morte. Se me consegui dela fazer escapar, se de mim mostrou ter piedade e são tantos os mortos e os que aguardam por socorro, não me virá buscar agora que está tudo arrasado. Eu matar não mato, só procuro por coisas de quem já delas não precise. Coisas valiosas e raras, anéis, pendentes, colares, jóias e até gargantilhas, muitas moedas e outros valores, tudo que me seja possível transportar nestas bolsas que consegui arranjar. Não é difícil passar despercebido pelo meio desta gente desorientada. Quem nada tem, como eu, importa-se lá se o chão que mexe destrói a cidade e lhe mata os habitantes. A mim irá matar a fome por muitos e bons meses. Tenho de arranjar um local afastado e muito seguro para esconder esta riqueza. Tenho de ter cuidado com esses bandidos que por aí andam ao mesmo. Trazem facas de lâminas afiadas às quais vão dando uso, mais do que às pistolas e carabinas. Os meus produtos seriam muito bem recebidos por estes assassinos. Mais de cinquenta fugiram aproveitando as ruínas e as paredes destruídas do presídio. Corriam como lebres assustadas mas deram logo conta dos coitados que iam gritando pelos seus mortos e que ficaram logo ali tombados e sem vida. Sobreviveram aos tremores para acabarem mortos por bandidos da pior espécie. Ainda vieram atrás deles alguns guardas. Dois acabaram mortos à pedrada por seis malfeitores. Anda a cidade enlouquecida depois de destruída. As gentes bem que podiam abalar daqui para fora. A mim dava-me maior facilidade e segurança para a tarefa. Os feridos e os outros que sobreviveram andam tão atormentados, tão aparvalhados, que mal não me farão! Ainda para mais sendo tão minúsculo e franzino, quem é que dá conta da minha faina? Ninguém, e é bem melhor que assim continue. Evito olhar para os rostos das pessoas que alivio. Trazem mais de metade da cabeça à mostra. A cor do que está lá dentro é estranha. Metade é sangue e o resto é um cinzento claro pastoso. Não me mete nojo, quero lá saber! Alguns deles trazem falta de olhos e os dentes todos partidos. São muitos os corpos com cabeças desfeitas. Sei disso porque prefiro retirar os terços e crucifixos por inteiro sem lhes rebentar os frágeis aloquetes. Para tal tenho de lhes levantar as cabeças e são muitas as que encontro neste estado. Há mais jovens como eu a tentar a sua sorte no meio dos destroços. Não preciso de me preocupar pois a riqueza é tanta que chega para mais de trinta dos nossos. Se o Ratazana cá estivesse! Só nós os dois, no meio de tanta abundância. Seria a verdadeira perdição! Malvada a hora em que se lhe meteu na cabeça enfiar-se com o tio e os irmãos naquela miserável barcaça rumo ao Brasil. Mas que sorte a dele. Safou-se dos abanões, ao menos. A ruela junta à Sé ficou cheiinha de ruínas e de mortos. Os animais e as pessoas que por lá habitavam estão todos mortos por baixo das paredes desfeitas. Parecia que o bairro estava a derreter-se e a espalhar-se como areia pelo chão. Se calhar tinha morrido mais o tio e os irmãos. Sacana do Ratazana! Pudesse ele ver o tesouro que carrego aqui comigo. Se imaginasse que o Anão Maneta seria o rapaz mais rico das redondezas até lhe caíam os queixos.

A guarda de el-rei!

Andam preocupados com o quê? Será melhor fazer-me passar por morto. Esses bandidos assaltam e roubam toda a gente. Eu só tiro a quem as coisas já não dão utilidade! Melhor seria que ajudassem a apanhar os assassinos que fugiram do presídio. São tantos malfeitores agora espalhados no meio desta loucura que muito será o trabalho que terá a guarda de realizar. Vão a caminho do Rossio. O hospital está em chamas. Deve ser um espectáculo digno de ser visto. Os pais da Fernandinha tinham ido para lá trabalhar nas limpezas com os padres. Se calhar estão mortos ou queimados. Estavam sempre a chamar-me nomes e a cuspirem-me na cara, os nojentos. A Fernandinha merecia melhor sorte. Vou ver se ela lá está. Se não morreu, a primeira coisa que deve fazer ao saber do incêndio no hospital é querer saber dos pais. Se estiverem mortos tomo conta dela. É muito o dinheiro e a riqueza que carrego. Depois de a procurar por lá, tenho de arranjar maneira de esconder este peso. Com tanto terço e crucifixo que trago aqui dentro, já devo estar bem abençoado.

Mal consigo avançar com tantas pedras tombadas e mortos espalhados pelo chão. Tanto choro e tanta reza juntos fazem uma barulheira maior que a do abalo da terra. Chora-se ao ritmo das orações salgadas. Este padre parece doido a chamar nomes ao Senhor. Anda a dar estaladas e a distribuir bofetões aos que pedem a clemência de Deus. E agora até a si mesmo dá sopapos. O mundo ficou doente com tanta destruição. Quero lá saber, quero lá saber! E as pessoas que correm por todos os lados, chamam todos os nomes que existem, desfazem e retirem alguns pedregulhos para arrancarem outros que se encontram no meio das ruas entupidas. Desaba o convento do Carmo lá no alto! É um estrondo valente que se faz sentir junto com os berros e mais berros das gentes que por lá se devem ter finado.

A Fernandinha tem de estar viva, tem de ser!

Começa-me a pesar este peso todo, mas nem pensar em aliviar as bolsas, isso é que não. Era só o que faltava. Subir e descer tanto monte de pedregulhos e de madeiras rachadas cansa. O céu está escuro do fumo dos incêndios e custa mais ouvir os gritos dos queimados dos que se lamentam no meio das paredes destruídas. Os cheiros também são novos, intensos e apodrecidos.

O que me quer agora aquele soldado de el-rei? Se aí estás preso assim ficarás, tenho bem mais em que pensar. Pede ajuda a quem te possa socorrer que eu estou à procura da Fernandinha. Um homem tão grande a chorar desta maneira, nunca vi! E o povo não pára de correr! As suas pernas trazem-nos ligeiros nesta direcção, mas porquê?

Uma parede de água? Mas o que é lá isso? O que estão para ali todos a gritar! Uma parede de água, fujam que uma parede de água sobe o rio para nos afogar? Vai lá lembrar aos demónios do céu mais esta maluqueira!

E nem que os ruídos de há pouco se juntassem todos novamente conseguiam alcançar em tamanho os da montanha de água que veio para nos matar. Não tenho hipótese de fuga. A onda arrasta tudo à sua frente, uma lixeira sobe as ruas destruídas por cima do rio que engole vivos, mortos, e cresce como um gigante na minha direcção. Vou tentar apanhar aquele imenso bocado de madeira e agarrar-me a ele com todas as forças que me restam. Largar o peso do meu tesouro está fora de questão, nem que me afogue e me leve consigo para o meio deste oceano que engole as ruas destruídas da cidade!

Subi a custo para cima do muito entulho que é arrastado pelo mar que entra pela cidade. Alguns seguem como eu, carregados em jangadas descobertas no meio de tantos destroços. Muitos são os que não sabem nadar e desaparecem rapidamente debaixo do tapete de água. Perdi um dos sacos nesta aventura, mas se não o largasse teria sido impossível apanhar a boleia deste tapete salvador. Olho para os lados e em alguns dos edifícios que se mantém de pé a água e o lixo rebentam portas e janelas para lá dos primeiros pisos. A água tem uma força gigantesca e continua a arrastar e a destruir tudo aquilo que apanha pelo caminho. Se não fosse pela paisagem destruída, pelos gritos e pelo medo instalado e que também a mim se colou, gostaria de voltar a viver esta experiência outra vez. Não sei se este pedaço de madeira alongada vai resistir por muito mais tempo. O que me vai valendo é a minha pequena figura. Por uma vez na minha vida miserável, aquilo que sempre serviu de gozo e de tanta troça é aqui uma vantagem. Sou leve e muito ligeiro. Consigo dar bom rumo a esta ruinosa barcaça que me transporta pelo meio da confusão. Alguém muito importante se deve ter portado mal para que estas forças da destruição tenham sido encomendadas destruir a cidade. Eu faço como os outros, quando os matam na praça pública. Vejo o espectáculo e sigo o meu caminho com a alma mais leve.

Será isto o fim do mundo? Se for, não vale a pena tentar perceber quais as palavras e as orações em falta pois tudo acabará dentro de instantes. Quero apenas descobrir a minha Fernanda antes que tudo se desmorone e transforme em pó, lama e lembrança.

Apenas peço isso!

Apenas peço isso e nada mais.

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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação III


Tenho de me alinhar antes de dar o aviso. O dia começou alterado nesta casa, e ainda para mais hoje, com tanto que há para fazer. O senhor Lefebvre nem imagina a dificuldade que vou ter em convencer toda a criadagem a abalar, sem motivo aparente, para fora da cidade. Vai ser o bom e o bonito! A Eulália não vai aceitar bem a ideia, ainda para mais sem que o senhor me tenha dito qual o verdadeiro motivo para nos apressarmos nesta fuga. Os primeiros raios de sol dizem-me que estou muito atrasada. Devemos sair daqui rapidamente. O que será que de tão misterioso e grave poderá estar para acontecer? Não admira o espanto da Eulália e de Simplício. As outras duas tontas nem sabem bem o que pensar. As suas cabecinhas são muito lerdas e a realidade acaba sempre por se impor às tolinhas. Se lhes disser que os talhantes as esperam para as acompanhar à missa dos finados, lá na entrada norte de Lisboa, arrancarão desmioladas sem dar conta da patranha. Qualquer disparate as fará sair de casa sem problema. O mais complicado é fazer com que a nossa boa Eulália daqui se arrede com o marido e bem depressinha. Melhor mesmo é arrancarmos os três o quanto antes, ir na sua companhia, mesmo sabendo que a velhota não gosta nada de mim, mas do mal, o menos. E se morrermos todos, como será? Sim, morrermos, pois essas foram as palavras mais assustadoras que o senhor Lefebvre usou. Não terá sido por qualquer estranho prazer que me terá dado esta instrução. Pela casa fazem-se escutar os passos apressados dos médicos que procuram as montadas nas cavalariças. Mas que situação mais aflitiva. Nunca antes vi o gordinho assim tão agitado. Não nos viram mas a sua saída foi visível e bem notada por muitos dos que já se deslocam para as igrejas, catedrais, basílicas e conventos. Altos desaforos e palavras muito desagradáveis foram bradadas pelos muitos que ali se encontram e que quase foram derrubados pelos ilustres cavaleiros. Muitas orações atravessam a boca do casal que acompanho. Súplicas e mais rezas da Eulália, pois todos estes estranhos comportamentos a si muito medo provocaram. O velhinho Simplício ouve muito mal. Dificilmente os seus olhos gastos olham para este mundo com a mesma esperança da filha. Já nem está por perto. A tola da Irene levou-a apressadamente consigo para procurar os talhantes no lugar que lhes dei como reservado. Se mal vier a acontecer, as duas terão ganho salvação. Foi tal a rapidez com que as pernas as levaram daqui para fora atrás da história dos talhantes, que até me dá pena a cabecinha oca da Laurindinha.

Andamos ao contrário do povo! Torna-se muito complicado fazer assim o trajecto. Orações e muita celebração religiosa levam a multidão para os locais de culto. A maioria deles situa-se nos locais opostos àquele para onde tentamos caminhar. Por muito que tente e que sinta, não consigo imaginar o que poderá estar para acontecer. O dia está bonito, a temperatura amena e quase primaveril, o povo passeia feliz neste dia. Mas que mal estará para vir ao mundo que tanto atrapalhou o meu sensato senhor Lefebvre. Subimos em direcção ao ponto mais alto da colina que dá para lá do castelo. A visão que daqui temos da cidade é seguramente das mais perfeitas. O Tejo continua a sorrir-me, agora com maior intensidade. São cada vez em maior número os barcos que chegam e nos visitam. Adoro ver o reflexo das suas velas e mastros nas águas do rio. Parei por alguns momentos, os suficientes para ter perdido de vista a Eulália e o marido. Não faz mal, deixá-los ir. Se tudo correr como acredito, não se passará nada e até ao final do dia estaremos todos de regresso a casa.

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Não consigo ver nada que possa vir a causar situação de perigo ou, como o gordinho de forma tão alterada me disse, tantas mortes que o inferno esfregará as mãos de contentamento. O que terá acontecido ao senhor médico para nos espavorir com estas notícias atormentadas? Lá em baixo as pessoas andam atarefadas mas felizes. Tentam chegar a tempo às igrejas apinhadas. Hoje o dia acordou com muito ânimo e a todos parece abençoar. São tantas as famílias, tantas as crianças que acompanham os pais e demais adultos. Não fazia ideia que na cidade se achassem quase tantas crianças como adultos. Muitas param ou ficam na praça a apreciar o espectáculo das fragatas reais e de muitos outros navios fundeados ao largo do Tejo. A Eulália e o Simplício ficaram definitivamente fora de vista. Fiquei aqui especada uma pequena eternidade a observar o cenário, mas não consegui resistir. Vou continuar a marcha para longe daqui, tal como me foi dito.
Mas, o que é isto? O que se passa? As pernas e o corpo tremem com tanto vigor que tenho de me ajoelhar para não tombar. É como se estivesse febril. Cravo os dedos das mãos com firmeza no solo para tentar equilibrar o corpo. E que barulho ensurdecedor é este que rebenta das entranhas do chão como uma imensa trovoada? Tento levantar-me para ver o que se passa lá por baixo, nas apinhadas ruas de Lisboa, mas o meu corpo não consegue estabilizar e tombo com toda a facilidade para o meio do caminho que se agita e avança como uma carruagem furiosa. Meu Deus, que força do destino é esta que nos visita neste Santo dia? Os barulhos são ensurdecedores. Nem cem trovões de outras tantas trovoadas a rebentar ao mesmo tempo conseguiriam atingir a força dos que aqui estou a ouvir. O mundo vai acabar! As paredes das casa, das igrejas, dos palácios estão todas a desabar, a cair em cima dos desgraçados que seguiam felizes o seu caminho. Onde estar Lefebvre, Deus meu?! A cidade transformou-se num verdadeiro inferno. Não consigo manter-me de pé. Dois ou três passinhos e caio logo como uma criança que experimenta os primeiros passos. Escuto os gritos das pessoas amarguradas que ficam por debaixo das muralhas, das paredes e dos telhados que lhes caem em cima sem misericórdia. É o inferno que brota dos pavimentos e que engole tudo sem critério. O chão não pára de tremer e os estremecimentos crescem em violência. Será isto possível? A cidade será arrasada pelas forças do demónio. Muitos terão sido os pecados cometidos para que estes horrores nos tenham sido encomendados. Os tremores continuam a lançar-me para o chão. Nem consigo estar de joelhos. Deito-me como uma crente em oração, com os ouvidos tapados pelas mãos e os olhos bem cerrados para me ausentar por momentos da tragédia. É impossível! O ruído sente-se por todo o meu corpo. É um monstro que me cobre da cabeça aos pés, abana-me com tanta força que as minhas lágrimas já não são de desespero, são de dor. Sou pisada por uns quantos que correm desorientados em direcção ao centro dos infernos, gritando nomes e esbracejando como loucos na procura dos seus.
Este momento não está a acontecer. Nas minhas ideias desligaram as luzes da razão e a escuridão lançou-me para este pesadelo que julgo estar a viver mas que, na realidade, só se passa na minha enegrecida imaginação. São os meus pecados a castigarem-me os sentidos. Terei tantos por confessar que o Senhor lançou por sobre mim a sua fúria. Uma fortíssima dor rasga-me o peito e aflige-me o corpo num frenesi atormentado. Este é o maior de todos os pesadelos, é sentido como se fosse real, como se estivesse mesmo a acontecer. É maior que todos os que já me foram servidos nas noites mal dormidas da minha juventude.
São cada vez mais os que me pisam ao correr desvairados na procura dos seus. Caem e voltam a levantar-se, correm desorientados, tentam combater a agitação do chão que continua a bailar esta dança mórbida. Alguns mexem-me para verificar se não estarei morta, ferida, mas não tenho coragem para afastar as mãos dos ouvidos ou sequer abrir os olhos. Desejo que tudo acabe como começou. Ao ficar assim nesta escuridão a que me impus, anseio que tudo possa ser apenas fruto da minha atormentada fantasia, nada mais. Rezar aos Céus, prometer cumprir com todas as obrigações de alma cristã, voltar a percorrer os seus caminhos. Será por força deste meu sentir que o pesadelo acabará por se desfazer, devolvendo-me o dia antes de me ter sido roubado? Espero que sim, mas o chão continua a tremer para todos os lados não dando sinais de afrouxamento.
Os trovões de mais de cem trovoadas continuam a soltar-se das mais profundas cavernas da terra. Atacam os lisboetas por todas as maneiras. O cheiro a fumo faz-se também sentir. O ar torna-se pesado, denso, mistura-se o odor da morte com o da pedra e da madeira queimada, com o da poeira e com o do sangue dos muitos feridos que saem aflitos das habitações destroçadas. Por aqui não tombam as paredes como lá por baixo. O chão estremece, as casas ficam rasgadas nas fachadas mas não se desmoronam com a facilidade das do centro da cidade. A colina fornece alguma protecção a estes habitantes. Muitos deles continuam a sua correria desgovernada pelas vielas abaixo, gritam como almas danadas, esbracejam, choram, rezam e imploram por uma bonança sagrada. E por estes momentos de loucura, por estas rezas e súplicas, a terra parece dar ouvidos à dor das gentes, abrandando a sua medonha efervescência.
Dou algum descanso às lágrimas. Levanto-me com as pernas trementes, como se ainda o chão lhes desse o movimento. Abro os olhos na direcção do Tejo, na direcção das ruínas, e não consigo controlar a minha dor. As lágrimas voltam a inundar-me a vista e os soluços saem do meu peito em penosa cadência. Como é possível o panorama da cidade do Tejo estar completamente aniquilado. As mais altas torres, o convento do Carmo que do outro lado da cidade se abate com um estrondo feroz, a zona ribeirinha devastada e destruída, o palácio, as casas e as ruas que não se conseguem distinguir no meio de tanto pó, de tanta pedra abatida. O povo caminha desorientado no meio da destruição. Consigo perceber daqui o largo junto ao hospital, que também tem uma espessa nuvem negra a sair da sua igreja. Há muita gente apinhada no meio do Rossio, e mais vão chegando, aumentando em muito o número daqueles que por lá se encontravam. Espero que Lefebvre esteja vivo, que seja um daqueles muitos que lá se encontram.
Barulho? Mas pode lá ser uma coisa destas! Rebentaram novamente das entranhas do chão os trovões dos demónios. No inferno juraram terminar com a raça dos homens. Atiro-me novamente para o chão, ainda mal refeita da terrível sensação de há momentos e eis que tudo se repete com redobrada violência. Os gritos são agora ainda mais audíveis. As mãos que me tapam os ouvidos pouca protecção me fornecem e sinto o corpo a ser atirado para todos os lados com grande facilidade.
Vai mesmo acabar. O mundo vai hoje ter um fim!

Escondo-me atrás das mãos, atrás dos barulhos penetrantes, atrás do medo e das rezas que vou cantando baixinho, atrás dos olhos cerrados que procuram a cidade de ontem, a cidade do Verão passado, a cidade que já não pertence a este tempo que a transforma. Toda eu tremo. As vidas são arrecadadas, vão sendo apagadas à medida que os abalos arrasam os poucos edifícios que resistem às sacudidelas do mundo. Entendo isto pelos inacreditáveis ruídos que crescem como um gigante à minha volta. Nada nem ninguém sairá poupado destes fortes estremeções. E um abismo suplicante corre do centro das muralhas à procura de uma explicação que tarda em surgir. É impossível isto estar a acontecer! Não podem existem forças com uma tão grande capacidade de destruição, muito menos a surgirem assim do nada, sem nenhum aviso. O médico amigo de Lefebvre tem estranhos conhecimentos. Quem lhe deu notícia destes horrores? Terá sido o próprio Demónio? A julgar pela dimensão dos poderes, será ele próprio servo dos infernos. Mas se assim fosse, qual a razão que o terá levado a dar conta deste desastre ao senhor Lefebvre?
Vamos perecer! Depressa nos juntaremos aos defuntos que lembramos neste dia.
A terra não dá tréguas! Não sou capaz de pensar. Um sabor com travo a fel inunda-me a garganta. Tusso de maneira nervosa e incontrolável, como se fosse o meu peito sair pela boca fora. É a alma que me destrói a esperança.
Vejo a figura do meu gordinho senhor Lefebvre deitada nos lençóis de mel. Foi mesmo agora! Como é possível que em tão curto espaço de tempo as nossas vidas desapareçam no centro desta imensa náusea?
Sinto-me desfalecer. Cada vez mais gente enlouquecida me pisa e violenta o corpo ao correr sem destino em todas as direcções. É um pavor tremendo este que tomou conta dos habitantes desta Lisboa destroçada. Não encontro forças para reagir. Aguardo com a dor marcada em tantas partes do meu corpo por este fim cruel que me estava consagrado.
Isto não é um sonho nem um pavoroso pesadelo!
É a realidade impiedosa que se abate sobre todos os habitantes deste mundo.

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terça-feira, 4 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação II


Será o meu senhor Lefebvre capaz de receber assim estes prazeres e deles fazer segredo? Na nossa vida tudo fica marcado pela dor e pelo prazer. Com esta língua esperta e afiada de francesinho atrevido e vaidoso, não vai conseguir manter segredo das histórias destas noites de consolo transpirado. Aos meus pensamentos nunca conseguirá chegar, mas ao dos amigos abastados e perfumados, aos ordinários miseráveis que se riem babados sempre que passo por eles, ébrios jogadores de vícios mais que duvidosos, a esses vai certamente contar os pormenores quentes destas noites. É um gordinho interessante e meigo. Nem sei porque me surgem estes queixumes à cabeça. Vale bem todos os momentos que passo em sua companhia. Tudo o que possa contar aos seus compinchas de desafio será fraco consolo para esses bêbados idiotas que o escutam. Este senhor médico que está de visita é figura distinta e muito diferente dos amigos tolos que por aqui se apresentam durante as ceias. Educado, nem parece dos nossos. Lefebvre diz que é a pessoa mais inteligente e culta que jamais conheceu. Desde que se encontraram em Paris, há mais de dez anos, nunca mais deixaram de ser amigos e confidentes, ainda para mais, senhores do mesmo ofício. Só mesmo o senhor ministro do rei disse conhecer figuras quase tão distintas como as deste médico brilhante. Até dá gosto ouvir a maneira rebuscada como ele procura as mais certas palavras para nos dizer as coisas. Vê-se logo que é uma pessoa diferente. E tu? Ressonas de exaustão barriga de banha. Já lá vai o tempo em que nos derretíamos um pelo outro a noite inteira. Estão a fazer-te mal os guisados oleosos da Eulália mais o pão de canela que ela te amassa propositadamente conforme a receita secreta da família. Vai ser a tua maldição, vais ver!

Ruído!

Mas quem poderá andar por aí a estas horas? Se calhar todo aquele barulho que fizemos há instantes acordou o distinto senhor. E tu, de tão alagado em suor com o calor dos nossos carnais afazeres, mais esta madrugada estupidamente quente para a época, pareces ter tomado banho. Vou abrir a janela para deixar entrar alguma da frescura deste sábado. Bom-dia Tejo querido, sempre sorridente, como se fosses tu o meu melhor amigo. Vou sair daqui que o dia já se adivinha. A Eulália quer acabar os preparativos das primeiras refeições para ir à missa com as meninas e o Simplício. Este dia, para mim, serve somente para receber em visita a memória dos meus pais, tal como em anos anteriores. Nunca soube onde os enterraram nem que rumo lhes foi dado pelos meus tios e primos. Gente louca! Caridade alguma me fará voltar àquelas terras escuras e amaldiçoadas!

Tenho de ir, há muita coisa a fazer.

Deixar ficar o senhor Lefebvre a ressonar mais uns instantes. Bem o merece depois de tanto exercício esforçado. Admiro-lhe a força e persistência, garotos há que lhe gabariam a genica.

Ruído!

Continuo a escutar este leve ranger. Melhor será abrir a porta e ir dar conta do que se passa.

É o senhor médico, mas, que fará aqui acordado tão cedo! Apanhou-me de surpresa. O seu rosto não desvenda qualquer expressão de espanto, antes desenha uma carregadíssima e incómoda preocupação. Está tão pálido que jurei ter visto um fantasma colado na porta dos seus aposentos. A sua figura tão alta e tão esguia quase me fazia largar o castiçal. Havia de ser o bom e o bonito!

Mas, que me conta? Maior é o susto que as suas palavras me provocam do que o causado pela sua figura de cera assim colada em frente ao quarto. Que história é esta de poder acontecer uma tragédia tremenda? Muitas vidas estarão em jogo se não der aviso ao senhor Lefebvre? Mas, mas, não percebo nada do que me diz! O seu rosto parece não mentir, e dos olhos escapam indicações ainda mais aterradoras do que as provocadas pelas suas palavras! Tenho de ir! Corro a avisar o meu amante com tamanha rapidez que a minha nudez acaba por se desvendar atabalhoadamente ao ilustre visitante. Apagou-se a luz da vela, abro a porta do quarto de onde acabei de sair, empurro Lefebvre para fora da cama com tamanha violência que o atiro para o meio do chão. Embrulho-o nos primeiros lençóis que encontro e mando-o imediatamente falar com o seu amigo médico, dando-lhe conta do efeito que as suas palavras tiveram em mim! Estou apavorada e nem me considero pessoa para grandes aflições.

Faço-o avançar ainda estremunhado em direcção ao amigo, mal embrulhado nos dois lençóis da cama desfeita. Não consigo evitar duas pequenas gargalhadas, misto de nervosismo e de gracejo. As nossas figuras, a esta hora da mal acordada manhã, avançando nestes preparos pelo corredor mal iluminado, acabam por me parecer muito engraçadas. Começou misteriosa e divertida a alvorada deste santo dia.

Aqui permanecemos os três por mais alguns instantes. Lefevbre disse-me para aguardar. Podem vir a precisar da minha serventia.

Os dois trocam impressões. Vê-se bem que a amizade que os une é muito forte. Parecem irmãos, dos verdadeiros, daqueles que nunca duvidam das palavras um do outro. Mas o assunto deve ser de uma grande importância. O gordinho ainda há pouco estava meio estremunhado e agora sai como uma flecha disparada na direcção do quarto. Corre de forma tão desorientada que até deixou cair os mantos que o cobriam, mas que figura! E agora? Que faz ele com aqueles assustados olhos azuis a olharem alucinados para mim?

Diz-me que os milagres não existem. Que tenho de avisar toda a criadagem para que saiam desta casa e que fujam o mais depressa possível para fora da cidade. Que não questionem de forma alguma esta ordem, por mais enlouquecida que possa parecer. As suas vidas dependem da rapidez com que se apressarem a correr em direcção ao norte da cidade. Diz que precisa de mim com vida ou a sua deixará de fazer grande sentido. Toma-me nos seus braços com violência e uma angústia no olhar, como se necessitasse mesmo de um milagre que vem procurar bem no fundo na minha boca. Beija-me como se este fosse o último beijo de nossas vidas. Sei onde o posso encontrar. Sei onde o devo encontrar, daqui a três dias, como me disse baixinho ao ouvido. E eis que volta a desaparecer no desarrumado quarto com pressa para se arranjar.

Toda esta estranhíssima situação não faz grande sentido. Lefebvre é tudo menos louco para brincar desta forma com a vida de todos os que aqui habitam e o servem com a maior das dignidades. Vou fazer exactamente aquilo que me disse. Acordar quem ainda dorme, arrumar com rapidez o que for de necessidade e abalar conforme disse em direcção ao norte da cidade. O médico deu-lhe notícia de algo verdadeiramente espantoso para que o meu gordinho me deixasse neste estado de nervos. São almas destas que tudo sabem, não serei estúpida para colocar as nossas vidas em risco não cumprindo com a alucinada ordem que me foi dada. A ele lhe devo já a responsabilidade do milagre da minha vida, esta será mais uma das maneiras de me proporcionar novamente a salvação.

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domingo, 2 de agosto de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação I

Proteger vidas, a minha missão é proteger vidas, apoiar estes abandonados crentes em Deus e que, estranhamente, não se opõem a nenhuma das instruções, como se estas fossem perfeitamente normais. Justificar-se-ão todos estes actos? A mensagem foi clara mas não dava qualquer indicação da altura da sua ocorrência, nem se os problemas causados por tamanha destruição serão em igual dimensão aos sonhados. Sou um homem de ciência e esta actuação poder-me-á vir a sair bem cara. Acredito neste empreendimento, quase como se me movesse um estranho sentido de aventura, tão estranho que se sobrepõe a qualquer travão de racionalidade. E se todas estas almas acabassem mortas e enterradas? Desde que me lembro que procuro respostas, razões objectivas e concretas para tantas questões, uma só razão que explique quem somos, uma razão que nos explique o porquê de aqui estarmos e do que fazemos. Tentar encontrar assim, nestes estranhos desígnios, nem que seja uma parcela mínima dessa resposta. Vale a minha vida, a minha reputação, a minha loucura. E a minha alma permanece continuadamente confusa depois de confrontada com estes momentos de dúvida. A minha consciência impeliu-me para relatar em verdade este meu sonho, independentemente das consequências que essa confissão me venha a provocar. Os homens têm de saber lidar com esta capacidade. Devemos aos nossos sonhos a devida e ponderada consideração.

E a minha história, repetir-se-á ela? Voltará de novo a moldar-se a realidade do meu porvir conforme as imagens anteriormente antecipadas e processadas na minha mente? Estou pronto! Sinto-me pronto para tudo aquilo que sequencialmente foi despoletado pelo meu pesadelo. As portas do futuro e do passado vão encontrar-se, mais uma vez, aqui e agora.

Não se passa nada!

Faltará talvez um pouco?

Felício, o meu bom Felício agita-se!

Continuo pronto para aquilo que está para chegar. Sinto o meu corpo a tremer de uma tão estranha maneira que não consigo sequer descrevê-la.

Felício está cada vez mais agitado. Que venha de uma vez por todas o que estiver para acontecer. Estou pronto para tudo aquilo que tiver de acontecer. Estou bem!

Estou pronto para ir, sinto-me pronto para ir. Para partir ou receber esta viagem.

Fecho os olhos e o ruído é avassalador, tudo à nossa volta é ruído, agudos sons, silvos que se fazem sentir de toda a parte, um tremendo e fortíssimo abalo que nos atira para o chão como se fossemos feitos de papel. O chão treme com uma violência indescritível, sem dar tréguas. Mantenho os olhos fechados pois as imagens da destruição são catastróficas. Tudo treme e abana como se o planeta fosse feito de papa. O chão ganhou vontade própria. Os estrondos! De baixo de nós parecem rebentar os mais potentes canhões. Não imaginava que os nossos ouvidos pudessem suportar estes ruídos. As pessoas parecem folhas arrastadas por um vento feroz que as esmigalha no meio dos destroços das habitações com toda a violência. Sentimo-nos tão perdidos, as pessoas sentem-se perdidas, abandonadas, incrédulas. Um passinho de cada vez e tombam novamente com a violência dos abalos. Somos atirados uns contra os outros, pisados por muitos que correm apavorados a tentar descobrir onde param os seus. Quanto tempo dura esta eternidade aniquiladora? Não irá ela ter um fim? Os telhados do hospital acabam de desabar acompanhando os ritmos da terra que atira a fachada do edifício de norte para o sul, e de sul para o norte vezes e vezes sem conta. Continuam alguns doentes a tentar descer pela escadaria, mas fazem-no rebolando uns pelos outros e por elas abaixo. É impossível tentar sequer descrever as vidas humanas que estão perdidas. Não existe explicação simples para o que se está aqui a passar. O chão continua a abanar, o meu corpo continua a ser empurrado, a cair, a ouvir os ruídos mais indescritíveis. Estamos todos no centro da mais pavorosa das alucinações. Não é possível descrever esta experiência! Felício mantém-se aqui perto de mim. Não acredito na nova cor do céu. Está cinzento, cor da destruição e das poeiras levantadas pelas muitas fachadas que já tombaram e por tantas outras que continuam a tombar como cartas de baralhos. Tanta destruição, muito maior do que tudo aquilo que uma alma humana pode imaginar. E este ruído! Barulhos de trovões aumentados em milhares de trovoadas a sair das entranhas da terra ao mesmo tempo, juntam-se aos gritos histéricos de uma cidade inteira apanhada de surpresa, juntam-se aos barulhos dos animais, aos barulhos das estruturas arquitectónicas que se transformam em poeira, aos estrompidos dos milhares de pessoas assustadas com os rostos dos mortos ou com aqueles que a seu lado ficam sem partes dos seus corpos.

Não pára! Tudo se mantém num horroroso estremecimento, um continuado agitar do planeta que nos atordoa. Alguns dos loucos saídos do hospital parecem ter ganho subitamente o juízo. Os seus rostos desenham expressões de pânico e passam a pertencer a este enredo como todos os outros. Lefebvre desce pelas escadarias acompanhado por Mestre Dufau, agarrados como duas crianças assustadas e incrédulas com a dimensão do desastre. A igreja e o Mosteiro, lá no alto, agitam-se de tal forma que suspeito que as suas paredes nos venham fazer companhia. O ruído provocado pela derrocada da sua cobertura conseguiu vencer todos os outros que nos vão ensurdecendo.

Não pára. Não há parede ou fachada de edifício que não se movimente num bailado irreal. E este barulho demoníaco perpetua-se de maneira impressionante. É-me difícil conseguir suportar os barulhos causados por tanta destruição. Tapo os ouvidos com as mãos num movimento irreflectido, instintivo. Os exércitos de Satanás anunciam a sua chegada das profundezas de Lisboa. Alguns edifícios começam a arder, são consumidos por chamas que, em alguns casos, começam a ganhar grandes proporções. Os estalidos da madeira crepitante soma-se aos da terra tremente, cresce ao lado dos latidos tresloucados dos cães, dos esgares de dor de tantas vítimas, de tantas famílias destroçadas, dos edifícios que por toda a cidade continuam a desabar e a soterrar todos os que se tentam salvar pelas vielas mais escondidas e apertadas. São muitas as pessoas que correm até ao Rossio, juntando-se ao grande número de doentes que por aqui inicialmente se foram amontoando. São tantos os que estão de pé quantos os que se amontoam caídos.

Com os ouvidos tapados, tendo perdido a noção do equilíbrio, surge o maior de todos os abalos. Como é possível a natureza esconder tanto poder no centro das suas entranhas. Os demónios que aí habitam terão ordens para pulverizar a vida de todos nós. Aqueles que ainda se mantinham de pé caem com a vibração. E a vontade com que os abalos se vão fazendo sentir uns atrás dos outros não manifesta qualquer acalmia. Muitas são as almas que choram lágrimas de dor, raiva e desespero.

Os tremores violentos parecem querer dar tréguas. Destroçaram a fé dos que permanecem silenciosamente incrédulos a aguardar por alguma benesse divina que lhes devolva a sua cidade montada. Lisboa está destruída numa amálgama de poeira e detritos que se encontram espalhados por todo o lado. Por breves segundos só se escutam as labaredas crepitantes a consumirem as entranhas arquitectónicas de algumas habitações que não sucumbiram à catástrofe. Continuam a chegar à praça centenas de sobreviventes incrédulos e desorientados com este cenário irreal. Muitos arrastam cadáveres, carregam feridos ao colo e às costas, apoiam-se em todos os que podem providenciar algum auxílio. Levanto-me. Procuro chegar até Lefebvre que permanece junto a um Dufau totalmente incrédulo com a dimensão do fenómeno. São feitas as primeiras rápidas tentativas para dar cobro a alguns dos incêndios que começaram a assumir maiores proporções. Lefebvre não consegue manter a alma desligada do frémito que o começou a consumir ainda antes do início dos estremecimentos. Corre pela escadaria em direcção ao interior do hospital de onde saem algumas labaredas e um negro e espesso fumo que alimenta o céu cinzento. Respira-se um ar cansado e incrivelmente bafiento.

Não me mexo! Mestre Dufau agarra-se a mim com uma expressão tão apavorada que se irá perpetuar para todo o sempre nas minhas memórias. O chão volta a agitar-se, o ruído assombroso volta a fazer-se escutar com maior intensidade, como se quatro montanhas ferozes se tivessem organizado, uma por cada um dos pontos cardeais, avançando enfurecidas na nossa direcção, tudo destruindo ao seu redor. E tudo o que já observei se repete com uma inaudita e assombrosa habilidade. A terra treme, desmancha mais edifícios, rasga mais paredes, mata mais e mais almas a cada derrocada, a cada apressada e atabalhoada fuga das gentes apavoradas que tinham acabado de sair de alguns dos locais que se mantinham só em parte destruídos. Aos milhares, as pessoas que acabaram de sair para as ruas, vielas e calçadas são agora apanhadas pelos blocos de edifícios, alguns já em chamas, que lhes caem em cima numa armadilha catastrófica para quem aspirava a uma suposta salvação. Por toda a parte os mortos crescem em número e algumas almas arruinadas começam a pilhar e a retirar aos muitos mortos tudo aquilo que achem por melhor lhes vir a servir. Estratégias do Demónio estas da alma humana. A inumanidade e bestialidade desta franja insensível de carácter abjecto acabam assim por se revelar na pior das catástrofes que alguma vez à raça humana foi dado a conhecer. O valor da vida humana ganha com esta tragédia a infeliz dimensão da indignidade.

O mundo continua a mexer-se, a tremer, a abanar enfurecido como um estranho paradigma de justiça. Os fogos aumentam e a relevância dos agitados momentos que nos atiram novamente ao pavimento forrado com tantos e tantos corpos aumenta na mesma proporção da destruição provocada e do número de mortos que vai causando.

Não pára! Dufau fecha os olhos e tapa os ouvidos bradando aos céus palavras na língua de Diderot. Agarra-se a mim com um desespero intimidante, treme com a mesma intensidade com que a terra se mexe e se agita debaixo de nossos pés. Tudo é ruído, trovão, cinza, pó, lágrima, fogo, chama, fumo, morte, desabamento e destruição. Os habitantes de Lisboa estão perdidos. Os telhados tombam uns atrás de outros e são cada vez mais os incêndios que nascem no centro de tantos escombros e ruínas. Não me restam mais palavras para descrever os sons que surgem impossíveis de todos os locais. O barulho imenso da terra louca, enfurecida, os gemidos, os gritos, os guinchos, os lamentos, as furiosas preces, os loucos aqui ao lado, os pavimentos que se abrem em fendas profundas que engolem pessoas ao desbarato, os animais que continuam alucinados, o intenso e profundo sentimento de impotência perante a dimensão dantesca da tragédia. E a terra que não pára de tremer, que não dá tréguas e que maltrata quem já não tem mais lágrimas para derramar. Foi muito pequena a parcela da tragédia que me foi comunicada no pesadelo desta madrugada. Olho em meu redor e compreendo que a dimensão desta tormentosa realidade permanecerá para sempre entranhada nas memórias deste país.

Será possível? Como pode ainda a Terra tremer depois de tanto tempo já consumido a destruir tudo o que havia para destruir? Alguns sobreviventes rastejam uns sobre os outros para evitar fachadas e paredes inteiras que ainda se mantém heroicamente de pé. A infinita vibração do planeta acaba por as fazer desabar sobre eles sem misericórdia, matando muitos outros que ali acabavam de chegar em seu auxílio. Dou por mim com os braços em sangue pela força exercida pelas mãos de Dufau. Deixou de tapar os ouvidos e agarra-se a mim como à sua própria vida. Constâncio corre, tropeça, cai, volta a levantar-se e corre novamente para junto de nós. O centro da praça é a maior das alas hospitalares. Todos os que de lá conseguiram sair aqui se encontram. Muitos foram, ainda assim, os que por lá ficaram. Os olhos do jovem barbeiro já não me olham com o mesmo distante cepticismo do primeiro momento. Não necessitamos do verbo para comunicar um ao outro tudo aquilo que nos vai na alma. Qualidade amaldiçoada a minha, de ímpar intensidade. Permitiu por a salvo largas dezenas de almas que acabaram por escapar a uma morte certa caso tivessem ficado no interior das enfermarias.

Uma segurança que desejei muitas vezes não ter de receber.

Coloca-me no centro da visão como espectador privilegiado da humana ignomínia.

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