terça-feira, 26 de outubro de 2010

QUARTO ACTO - continuação VII


Descubro com sincera alegria que as pequenas coisas passaram a ter outra importância. Rafaela entrou definitivamente na minha vida. O afecto é doce e os medos foram aplacados. Deixei que desta vez me acompanhasse de volta a Lisboa. A cidade tenta recuperar, as obras são tantas, os estaleiros montados um pouco por todo o lado acrescentam um frémito ímpar à cidade para quem chega vindo do Tejo. A vida no hospital sofreu alterações profundas devido à catástrofe. Só agora se conseguiu restabelecer uma aparente normalidade no que ao trabalho diário diz respeito. O rei continua ausente e tem sido o seu Ministro Sebastião que, com invulgar firmeza e clareza de ideias, tem feito avançar a reconstrução da cidade. Os arquitectos reais por si escolhidos conseguiram dar resposta tão rápida às suas ideias que as línguas mais insensatas dizem possuir poderes inexplicáveis. O certo é que a cidade é palco para largas dezenas de pólos de construção. São inúmeras as caravanas que ainda retiram as marcas da cidade destruída. Outras, aqui e além colocam largura e fornecem geometria nas ruelas que por lá se erguiam. Acrescenta-se a esta imagem as imensas empreitadas que se vão praticando na reconstrução de algumas fachadas menos danificadas e que, por ordens superiores, são para manter. A cidade está transformada num imenso formigueiro desordenado. Só daqui a alguns anos se entenderá a sua nova fisionomia, mas já se compreendeu que a cidade crescerá muito diferente do que era antes desse primeiro dia de Novembro do ano passado. Rafaela tem permanecido silenciosa grande parte da viagem. Desde que saímos de Santarém percebi nela a pouca vontade que tinha em voltar para Lisboa. Os dias por lá são diferentes. Aqui tudo é mais agitado, mais povoado com as imagens ainda frescas da loucura. Carregaremos tudo isso em nós até que os dias da última viagem fiquem mais perto. A luz que invade o grande Tejo antes de atingirmos o cais é única, quase indescritível. A esta hora da tardinha, fosse eu Lefebvre o real retratista do reino, era aqui, neste lugar, que pintaria a paisagem que serviria de cenário à minha próxima obra. As margens do rio são mágicas e conseguiram iluminar com um sorriso o rosto antes tristonho de Rafaela.

- Então, mais animada? A viagem cansou-te? São as recordações que fazem com que, mesmo que não queiramos, fiquemos abatidos. Não tem sido fácil ser um sobrevivente daquele dia pavoroso.

Lefebvre não faz a mínima ideia do que me vai na alma. Durante grande parte da viagem, ao olhar o rio, imaginei como seria bom transformar-me num dos seus habitantes. Passear no fundo do seu leito, desaparecer para bem longe desta desorientada cidade. Mergulhávamos os dois nas águas temperadas do Tejo, os corpos seriam impelidos pela corrente até à foz e desaparecíamos finalmente no meio do imenso Oceano para não mais voltar.

- Não sei que diga. O desgosto colou-se a mim sem razão aparente. Tenho estado a olhar o rio, as suas águas. De quando em vez vejo os peixes a passear por ele acima. Parecem bem mais felizes lá dentro do que nós aqui em cima.

Pinta esta frase com um sorriso. Olha para mim e responde deste jeito bucólico, carregada de uma vontade incontrolável em me abraçar à qual evitou dar seguimento. Aproxima-se e junto ao meu ouvido esquerdo confessa:

- Tenho saudades dos dias em Santarém, das tardes e das noites, principalmente das noites. Tenho uma saudade que me faz saltar o peito, que me faz saltar as lágrimas dos olhos porque tenho medo que não queiras mais passear o teu carinho por mim ao chegarmos mais uma vez a esta cidade maldita.

Rafaela debruça-se para voltar a observar o fundo do rio, debruça-se para o lado de lá, para a margem oposta à da cidade, para dar a entender como a odeia e ao mesmo tempo como lhe está agradecida.

- Nada do que dizes faz sentido. Não é verdade. Hoje mesmo faço questão em que fiques comigo, em que não te atrevas a dormir sozinha e deixar-me sem companhia neste regresso. Estamos os dois igualmente assustados. Agora que sabemos ser o mundo inteiro feito de papel, receamos que a qualquer instante um sopro divino mais incandescente volte a atiçar as chamas da perdição ao redor das estradas que pisamos. Não podemos estar sempre a pensar dessa maneira.

O seu corpo não se mexe. Rafaela permanece a olhar o Tejo e a margem do lado de lá do rio.

- Ouviste o que te disse? Porque não me respondes?

Sempre a repousar a sua vista no lado de lá, avança sem pressas a sua mão direita para a minha onde parou. Está gelada como um seixo acabado de retirar do próprio Tejo.

- Em Santarém fui feliz como nunca julguei ser. Em Santarém fomos um para o outro. Em Santarém a minha vida transformou-se para sempre e desejei não mais de lá sair. O meu receio é que o teu coração possa voltar a ficar da mesma temperatura da minha mão.

Só consigo pensar em Mestre Bernardo e nas suas palavras. As palavras que avisaram do monstruoso que estava para acontecer naquele dia. A coragem que teve para vencer os receios de que pudesse ser considerado um demente. A vontade que tenho em ser novamente o tigre em que me transformei na manhã desse mesmo dia.

- Se me escutares, se me escutares verdadeiramente sabes que isso já não é possível. Viajámos até um lugar que só nós dois conhecemos. Partilhámos uma história da qual já não nos podemos separar. Estou a ficar cansado, preciso de um lugar onde recomeçar e de alguém em quem possa confiar.

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domingo, 24 de outubro de 2010

QUARTO ACTO - continuação VI


Aqui senti o tempo transformar-se. Um equilíbrio quebrou finalmente o desalinho. Fernanda escondia a resposta. Era nela que estavam gravadas as palavras que serenaram a minha dor. Jamais conseguiria ser quem fui se não me entregasse nos seus braços, se não passeasse no seu colo, se não adormecesse embrulhado nas suas pernas e se não me deixasse afundar na doce maré dos seus cabelos. As minhas sombras tombaram como um castelo em ruínas. Bastou o sopro imaculado deste vento doce para derrubar as paredes que continuavam de pé. Tudo passou a fazer sentido. As inesquecíveis e atormentadas memórias recentes ficaram subitamente enterradas neste delicado corpo de mulher-menina que para sempre as engoliu.

- É fresca a candura que transmites, fresca como este espaço onde nos abrigámos. Devolveste-me em segredo e em silêncio imagens que estavam tão escondidas, tão ocultas da minha lembrança como os espaços que percorri enquanto menino.

As palavras foram derretidas, transformadas em sensações, em trocas quentes e sensuais entre dois seres que desde há muito se conhecem. Esta ligação, este segredo sublime volta a aparecer quando já não o pensava possível. Até ontem a minha vida foi escrita com um propósito, numa ténue linha imaterial e insípida. O rugido do nosso reencontro perpetuou-se pelas paredes deste abrigo. Apaixonados assim só uma única vez para todo o sempre. O corpo e a palavra desaparecem, transformam-se em sal e em suor, transformam-se em graça numa dádiva singular que não escolhe idade nem alteza. Voltámos a ser quem fomos, voltámos a recordar o ponto zero da existência. O Mundo inteiro foi revirado do interior para o exterior, desaparece o avesso e o direito das coisas. Nada existe e tudo, só agora, passa a ser real. O meu corpo está colado ao de Fernanda.

- O teu corpo é o meu, o meu o teu. As minhas dores e alegrias soam iguais às tuas. Deixei de estar sozinho, deixámos de estar sozinhos. Para sobrevivermos temos de aprender a fazer tudo de novo.

A vida inteira acontece nestes instantes. Temos de saber escutar o que tem para nos dizer, temos de acreditar na sua força única pois é nela que reside a esperança e é através dela que nos será comunicada toda a verdade.

- Já te conhecia Fernanda, sempre te conheci, os avisos eram constantes, depois fraquejaram, depois tornaram-se novamente fortes e ritmados até quase se deixarem de escutar naquele dia. Deixei de me preocupar, deixei que o teu rosto me fosse sendo comunicado nos sonhos, ao longo das viagens que nunca me trouxeram até ti, ao longo desta vida que me foi salvando sempre que me anunciava estar para breve a tua vinda. Claro que não acreditei. Nunca fui pessoa para acreditar no poder bizarro das palavras surdas, dos sonhos cinzentos, das contínuas formas de realçar o absurdo e muito menos neste Amor eterno que me aparecia e desaparecia vezes e vezes sem conta, empacotado em misteriosas luzes azuis no meio de tantos sonhos nublados.

O dia vai aparecendo devagar nas paredes junto à entrada do refúgio. Não sentimos o frio nem a humidade que vem de todas as suas entranhas. As mais escuras foram evitadas. Mantivemo-nos nesta perpétua ligação num espaço onde apenas os nossos dois corpos se conseguiam movimentar. Fernanda volta-se, abraça-me mais uma vez com os olhos brilhantes e a alma perfumada, percebe naquele carinho a importância que este momento tem nas nossas vidas. Beija-me ao mesmo tempo que os seus dedos passeiam pelo meu rosto. Observa com ternura as marcas que o tempo semeou por mim, as mesmas marcas que me diz conhecer desde que se lembra de existir. Deita a cabeça de lado sobre o meu peito e escuta este seu coração.

- Não morreste aqui Bernardo. Não foi aqui que a morte te veio encontrar. Aqui renascemos, aqui nos voltamos a descobrir uma vez mais. Tu sabes que os caminhos desta vida são obrigatoriamente diferentes das outras, das que vivemos e das que ainda faltam ser por nós vividas. Sempre que isto nos acontece, ficamos com este estranho sabor na boca, para além de acordarmos com ela tão seca como um pedaço de papel velho e ressequido. O teu coração está forte. Bate tão forte e tão intenso como batia quando nos encontrámos pela primeira vez. E nem dessa vez ficámos com a sensação de ter sido verdadeiramente a primeira.

O rosto de Fernanda volta a subir até os seus olhos voltarem a comunicar com os meus. No meio deste desalinho, a vida começa a fazer, finalmente, um pouco de sentido. A sua mão delicada toca-me na boca, manda-me calar com a ternura do gesto. Passado, presente e futuro são totalmente quebrados. Repetidamente, vezes e vezes sem conta os vencemos através desta paixão. Os olhos fecham-se e os nossos corpos alinham-se, voltam-se a unir, voltam uma vez mais a ser um só e a sentir que o tempo não existe.

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terça-feira, 19 de outubro de 2010

QUARTO ACTO - continuação V


As sombras distraem as ideias. Durante a noite sentem-se melhor os abalos que parecem não querer desaparecer. Mantém todos em constante sobressalto pois está ainda bem presente a mágoa e a imensa destruição causada no primeiro dia de Novembro do ano passado. O quadro de mestre Hieronimus falou com grande eloquência. As palavras de Fernanda relataram com toda a clareza e inusitada exactidão a expressividade das imagens representadas pelo grande mestre. Esse propósito esteve guardado em grande segredo nas vontades de todos nós, tão bem escondido como a própria pintura de Bosch. A sessão que antecipava a força global da imensa destruição estava já prevista. Faltava apenas a chave para conseguir decifrar nos seus actores o dia e a hora da imensa tragédia. Ao conjugarmos essas vontades, ao fazer com que essas intenções amaldiçoadas dessem execução a uma reforma que de outra maneira jamais seria alcançada, traçámos um caminho e um destino comum que não podemos despeitar. Não tenho a mais pequena dúvida. Nada acontece por acaso, tudo acontece por acaso! Ser-me-ia difícil conseguir dormir com esta maravilhosa conjugação de acontecimentos que se vão desenrolando à nossa frente. Fernanda necessita do abrigo escondido do pequeno bosque para com Mestre Bernardo resolver de vez todas as questões. As que desorientam e desorganizam uma alma quando lhes é vedado o mantimento devido, assim como para as outras, as mais profundas, as que carecem de uma bem mais delicada ponderação. Ao longo do que resta deste ano, teremos de conjugar os nossos esforços. Mestre Bernardo terá de terminar a sua escritura acrescentando-lhe no final a lembrança desta doce noite passada com Fernanda no coração da floresta. Não mais se poderá esquecer deste momento pois é hoje que se transformará, finalmente, no homem que necessito para os tempos que estão para chegar. Fernanda passará por uma nova fase com a maternidade que lhe está reservada. Dará fruto esta paixão eterna das duas almas peregrinas. As datas de todos os acontecimentos permanecem ocultas nas entrelinhas das estrelas. Nós, os Libertadores, continuamos a tarefa rotineira e pragmática de cortar a direito, de avançar pelo centro das avalanches ou das mais altas ondas dos mares, encharcados de justiça e sem nada temer. Grande parte do segredo reside na firmeza com que esta missão será realizada. O Mundo não deixará de avançar assinalando um a um, com regularidade e método, os bravos e valorosos Libertadores. Que façamos sempre parte activa dessas Suas empreitadas.


São mais as lutas que as mortes, mais as lutas que as mortes que irão provocar. Os homens jamais conseguirão alcançar o propósito dos deuses, jamais! Não sairão vencedores, sairão sempre derrotados, sempre derrotados pela própria arma com que julgam aplacar a ira do adversário, do adversário que não merece a sorte que lhe está reservada, nem ele nem o suposto vencedor da querela. A espada que mata ou que fere é a mesma que se vira contra o cozinheiro, contra o cozinheiro que se julga Libertador. É falso como um Judas desesperado, como um desesperado. Não sei lutar mas as minhas palavras escritas a sangue, as mesmas que vão distrair a fuga para o esquecimento, para o esquecimento para onde resvala a minha dor, a minha dor e a minha alma de Libertador atraiçoado, atraiçoado por este beco sem saída, para este beco que pinto com as cores das palavras angustiadas, as minhas palavras que me saem mexidas como nenhuma outra do centro das ideias, das ideias que não estão bem, que nem pensam, que castigam o adversário, que o matam, que matam os impostores para depois me atirarem de volta a este poço onde espero, onde aguardo, onde apanho os pedaços de morte que está próxima, que sinto tão próxima como estes pequeninos pedaços de loucura que me vão alimentando a existência.

- Tapem os narizes que o cheiro nauseabundo dos Libertadores veio para não mais nos largar! Tapem bem a boca e os narizes pois o fétido odor que vos irá envenenar as entranhas será o mesmo que vos alterará os sentidos ao ponto de jamais poderem acreditar no que vos é mostrado. Salvem-se enquanto ainda é tempo! Sejam rápidos a fugir daqui para fora, sejam rápidos, velozes como os pássaros do Fim, como os pássaros negros do Senhor de todos os invernos, de todos os invernos que ainda farão parte da vossa triste e inútil existência. Inúteis, sois um imenso bando de inúteis! Os Libertadores alimentar-se-ão dos vossos cadáveres, alimentar-se-ão das vossas últimas esperanças para vos castigarem e vos presentearem com a Loucura. O meu irmão não brinca em serviço, o meu irmão julga que a selva por onde se insinua é inexpugnável mas já conheço a sua força e a sua forma de jogar desde que a magia das suas palavras deixou de fazer qualquer sentido. Sebastião não é mais que um triste e desonrado Libertador, triste e desonrado como mais nenhum outro. Sebastião caminha a passos largos para um destino que grita de satisfação. Está finalmente encontrado o serviçal infernal, o Libertador mais poderoso e mais enganador, mais enganador. Banqueteia-se com o poder que julga dominar mas que apenas o monopoliza e algema. Tapem a boca e os narizes pois o veneno deste pérfido perfume acabará com todos vós antes mesmo do final da madrugada.

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domingo, 17 de outubro de 2010

QUARTO ACTO - continuação IV

As selvas do espírito são por si só suficientemente complicadas para que não necessitemos de as atiçar ainda mais. A manhã está deliciosa. O meu amor deve estar apenas ligeiramente perturbado por ter voltado a esta cidade encantada depois de tantos anos desde a última vez. Sei o que sonhei na madrugada deste dia. Cada dia mais que passa eu cedo a esta ideia de que nada do que nos acontece é simples fruto do acaso. Apenas um beijo de amor saído da mais pura e cristalina das histórias faria com que esta realidade se pudesse transformar de novo na minha cabeça, para que tudo voltasse a ser como era na infância. Os despertadores tocam, a cidade e a baía acordam ao mesmo tempo. Nápoles acolhe-nos sem nunca nos fazer sentir estranhos, nem tão pouco visitantes. Todos os que trocam palavras connosco fazem-no como se nos conhecessem desde sempre. Alguns é como se apenas ontem nos tivéssemos despedido e hoje retomássemos com naturalidade as conversas da véspera. Uma pancadinha de amizade nas costas, braços abertos, mãos na cintura, sábias palavras de amizade colocadas com aquele timbre característico do “dialetto napolitano”, e o feitiço está lançado. E as vidas passadas surgem nas histórias que nos desejam contar, nos conselhos e na vontade com que nos apoiam em direcção ao futuro, e tudo isto não é mais do que o simples fruto da nossa imaginação atiçado pela magia do lugar e do momento. E o sapo falou, como na história do príncipe que necessitava do beijo salvador para o transformar de novo em gente. A crueldade esperou, expectante. Contou com a imensa paciência do amigo tempo, um aliado fiel e sempre pronto para se colocar do seu lado. Ao abrigo da escuridão da noite daquele longínquo ano de setenta e nove depois de Cristo, o Vesúvio cantou a mais quente de todas as melodias. Primeiro cuspiu pelos céus toneladas de pedras e de cinzas que foram caindo por cima da cidade e por todas as zonas ao seu redor. Depois ceifou instantaneamente a vida dos restantes habitantes de Pompeia com uma intensa onda de calor saída do fundo das suas entranhas. Foram todos mortos num raio de cerca de vinte quilómetros. Terão até as próprias almas sido fervidas e destruídas com as altíssimas temperaturas que emanaram do vulcão. As que lhe conseguiram resistir ficaram por aqui perdidas nessa memória alucinada, nesse louco momento que aqui aconteceu há mais de dezanove séculos atrás. São almas que andam perdidas e desalentadas há quase dois milénios. Bernardo sentiu a sua força quando por aqui passeou com os seus pais ainda bem jovem. A sua linda cabecinha deve ter imaginado essas coisas estranhas, essas sombras do passado, esses iluminados pesadelos que permaneceram para todo o sempre marcados com vigor nas pedras destas calçadas, destes passeios e destas ruas, destas casas com assinaturas tão perfeitas e tão belas como triste é a história que está por detrás da sua fama. A vida é bela, como é belo o nosso amor e como todos os amores deveriam ser. Não podemos simplesmente fazer desaparecer os nossos momentos mais sombrios, assim como as nossas memórias mais aterradoras. Para dar luta à mais sombria das nossas sombras, para tentar derrotar o nosso mais desalinhado pesadelo, todos necessitamos de ajuda. Eu tudo farei para que Bernardo possa encontrar de novo o pôr-do-sol para além desta sua tempestade.

Atirei-me de cabeça para o interior desta lembrança sem querer saber das implicações que este meu acto pudesse causar em Constança. A nona de Beethoven a saltar dentro de mim, a mesma que Kubrick usou para temperar a sua laranja. Não trazia comigo qualquer intenção de falar ou sequer debruçar-me sobre o meu passado e todavia aqui me fiz deslocar para chocar com ele com violência. Os misteriosos sinais por mim guardados, essas conversas misteriosas com os antigos habitantes de Pompeia, tinham mesmo acontecido. Não foram fruto de uma qualquer imaginação prodigiosa de um pequeno e assustado rapazinho. Perante a nobreza, o peso da história, a localização e a intensa repercussão que as figuras petrificadas me causaram, poderia ter visto e, sobretudo, imaginado estas vozes e ter criado diálogos para melhor teatralizar e contextualizar esse forte impacto. Constança olha para mim como se também ela soubesse que a confissão que lhe acabei de fazer é sentida e verdadeira. Foi importante descarregar parte deste peso que me atormentava a existência. Cheguei a imaginar-me louco, desvairado e necessito muito da sua companhia e do seu amor para me tranquilizar. Estou seguro que com o seu apoio poderemos tentar decifrar e até mesmo retirar algum sentido, um qualquer significado que seja desta experiência em Pompeia. O Mundo está transfigurado desde que estes rapazes olham na minha direcção, todos com a mesma vontade. Temos de nos retirar rapidamente deste lugar, temos de correr em direcção ao lado oposto da montanha que domina a paisagem, não temos um segundo só que seja para sentir o frio que este medo enorme nos provoca. Pior que sentir esse gelo colado à alma, é a quase certeza que, por muito que os nossos actos nos obriguem a agir desta forma, o resultado desta corrida está inevitavelmente condenado a um triste fracasso. Os primeiros passos que damos apressados uns atrás dos outros são desencontrados, meio desalinhados. A determinada altura da corrida deixámos de ter noção do tempo gasto na demanda. Quando já nos encontrávamos bem unidos num pelotão coeso e ritmado, lembro-me que olhámos nos olhos uns dos outros num breve instante com a dimensão da eternidade. Sorrimos em conjunto como parceiros inseparáveis. Sem dizer uma única palavra ficámos para sempre assim unidos, perpetuados pelo manto espesso de cinzas vulcânicas que nos serviu o céu sem piedade.

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