quarta-feira, 19 de maio de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação VIII


-Amigo Bernardo, é impossível imaginar outra forma de esperança. Aproveitaremos esta oportunidade única para erguer uma nova Lisboa como uma miragem dos céus. Olharemos em frente para o futuro com a moral colocada no mais elevado pedestal da história. As vidas serão transformadas, amantes voltarão a sorrir com a cidade que se estenderá perante os seus olhos apaixonados, nada se construirá sem antever com segurança a mesma forma de infortúnio. Seria estúpido não acautelar as construções com as devidas precauções e solidez, afastar fachadas de tal forma que as avenidas entre si sejam amplas, extensas e iluminadas. Reservei para si uma tarefa que sei que cumprirá com o zelo e a eficácia que lhe reconhecemos.

A paisagem aparece tão escondida como Fernanda. Uma corrida inesperada afastou-a daqui como uma flecha. O ministro não parece estar minimamente preocupado com esta situação. Tornou-se invisível como imaginou ao descrever tantas viagens ao longo dos seus dias de sono. Agora interessa mais ao ministro a reconstrução rápida da cidade, restabelecer a ordem e a razão, recuperar a normalidade e devolver alguma esperança onde só habita a angústia e o desgosto. Foi seduzido pelo outro lado da desgraça, navega nessas ondas como um sonhador, tem visões que vão muito para além dos próximos anos, das próximas décadas, e as histórias de Fernanda colaram-se aos seus caprichos como ouro derretido, como as talhas douradas dos altares que adornam maravilhosamente as terrenas visões do que é divino.

-Os deuses entretiveram-se a acabar com a moralidade que todos pensávamos existir. Este sinal que nos enviaram foi uma lição. Só ao fim de uma boa centena de anos poderá ser totalmente identificada. Já cá não estaremos para compreender todas as implicações do que nos está a acontecer mas não deixaremos passar em branco esta folha da história. Dela retiramos os entendimentos, copiamos os segredos e substituímos a paisagem destroçada colando-lhe a nossa vontade com as formas desejadas. Todos os projectos que verão a luz dos tempos terão este selo de vigor e de coragem, de clareza e de objectividade. Não é por acaso que nos encontramos nesta curva dos tempos mestre Bernardo. Temos de ser humildes e entender que nada acontece por acaso.

Os ventos sopram com alguma intensidade trazendo os odores da maré. Estabelecem a fronteira, seduzem o local onde o rio se encontra com o mar, temperam as ondas que de mansinho rebentam nas areias douradas. Todas as palavras do ministro foram comunicadas sem que os nossos olhos se tivessem encontrado. Pertence-lhe a conversa cara a cara e estranhei que assim tenha acontecido. Avança com as mãos unidas atrás das costas, mais lentamente. Tem a cabeça levemente curvada na direcção do chão e pontapeia uma pedra que estava semeada no meio do caminho para a frente, na direcção da falésia por onde voou.

- Viu mestre Bernardo, viu como esta pequena pedra não imaginava a viagem que este dia tinha para lhe oferecer. Guardada que esteve por aqui tempos esquecidos de tudo e de todos, foge pelo barranco abaixo alegre como nenhuma outra. Já tem esta história para contar.

Afastámo-nos o suficiente para ninguém nos ver ou escutar. O barulho do mar e dos pássaros que vão percorrendo o céu azul aproveitando o ar fresco que se faz sentir dificultam o entendimento do discurso obrigando o ministro a aumentar a intensidade e o tom da conversa.

Estes presentes não conseguem apagar as mais recentes recordações. Fernanda está desaparecida, o ministro continua misterioso e as suas palavras pouco ou nada esclarecem, não dão nenhum avanço na explicação do seu propósito.

- Sejam quais forem as suas intenções ministro Sebastião, não sou capaz de esconder esta crescente inquietação provocada pelo desaparecimento da senhorita Fernanda. Não deveríamos enviar alguém atrás dela? Estes caminhos podem esconder obstáculos ou armadilhas capazes de ferir a rapariga com gravidade. Não faltarão momentos para conversar com maior tranquilidade. Acho que devemos tentar descobrir para onde foi.

Viro o corpo na direcção oposta ao do passeio e sigo em passo apressado na procura de Fernanda. Embrenho-me no bosque no exacto local onde há instantes a vi desaparecer. Não é inacessível e a luz penetra com facilidade ao longo dos primeiros metros do arvoredo. O vento roça nas copas e os sons das ramagens começam a fazer parte de mim. Sinto o bosque como um ser vivo e ainda mal penetrei no seu interior. É-me difícil entender esta corrida. Tudo acontecia com aparente normalidade até ao momento em que Fernanda abalou sem rumo certo pelo interior do matagal. Não vejo nenhum ramo partido, folhagens pisadas, qualquer indício da sua passagem por este local. Devo estar a caminhar por um outro trilho que não aquele que terá escolhido para se esconder. Quer estar sozinha e o apelo deste lugar deve ter tocado forte no seu coração. Os últimos meses têm sido pródigos em emoções, em sentimentos desfasados e desfocados da normalidade, seja lá o que isso for. Não vai ser fácil encontrar um caminho que nos leve de volta ao que éramos antes daquele Novembro maldito. Aqui tudo é simples e natural. As sombras são sombras, a luz filtrada pelas ramagens vai bailando no nosso rosto, nos troncos, no chão e nos trilhos desalinhados que ora se escondem ora se dão a conhecer, os sons são pequenos feitiços que adocicam a passagem por este lugar mágico, os passos vão sendo amortecidos pela folhagem que atapeta o recinto, os troncos são soldados que o guardam com dignidade e nobreza, o azul do céu que atravessa de quando em vez as copas altivas dos guerreiros dá sinal de que ainda nos mantemos acordados, firmes no propósito que nos trouxe até aqui.

Os felizardos que semearam as loucuras nos tempos obrigam a que os dias sejam agora temperados com as suas raízes. Pedimos que as sombras não voltem, que os lugares deixem de ser tão escuros, que as paixões regressem, que os segredos sejam recuperados e se restabeleça alguma noção de normalidade. Fernanda não terá maturidade nem idade suficiente para resistir a tanta desventura. A família desaparecida, a luz negra do seu poder a revestir com perfídia todas as noites e todos os dias. Também eu fugiria para longe de tudo, choraria a rir e gracejaria chorando para que alguma noção de sossego surgisse de repente no seio dessa solução. Não se podem considerar as cotações das almas nestes dias, caso o façamos deixaremos que as ruínas dos nossos pensamentos acabem por destruir o que ainda nos resta de vigor. Viu nestes bosques um resguardo que a abrigasse desses seus inimigos invisíveis. O seu rosto decorado não conseguia esconder as curvas e contracurvas que foram desenhadas no espírito e acabaram por lhe precipitar uma fuga acelerada rumo a este lugar onde se veio refugiar.


terça-feira, 18 de maio de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação VII

Na raiz dos meus sonhos nasceram maleitas inquietantes e as chagas abertas pelo mal produzido são horríveis, reflectem todas as malícias e desesperos com impiedade. Navego por sujas e densas lamas, Assassino as ideias mais ternas que ousam ainda assim brotar em mim para que não possam vir a causar embaraço a tanta maldade. Sinto um ódio voraz a tomar conta desta minha alma abandonada, mutilada por tanta dor criada, por tanta maldade provocada e por tanta insensatez. Acredito não ser mais a pessoa que sabia habitar em mim. Corro novamente para me afastar de tudo como no sonho, como na realidade, como, afinal de contas, quando nada acontece como antevi. Menti a mestre Bernardo, parece estar mais abandonado do que eu neste formigueiro despedaçado. Não existe nada mais para além deste destino, deste lugar onde o ministro nos trouxe. Não percebi nada que me desse a entender o que está para acontecer, apenas esta sensação de insegurança e de medo a crescer como uma impaciência pelas pernas acima e a penetrar como um veneno pelo ventre, a rebentar com o peito como um canhão. Prefiro a incomparável sensação de estranheza que me proporciona o conhecimento do que está para acontecer do que esta restauração da normalidade, este reavivar dos sentidos comuns, esta eterna e repetida forma de solidão. O bosque é pequeno demais. Apetecia-me ter pela frente a mais densa de todas as florestas, transformar-me em lobo feroz, acompanhar a matilha em busca da felicidade da caçada, em busca do frenesi da amizade poderosa e cúmplice. Talvez consiga transformar-me nesta espécie de neblina que cresce junto às raízes e às heras, junto aos fungos e à caruma, junto ao chão irregular que me comunica o caminho a seguir. Pode ser que consiga encontrar assim o amor. Não está morto, o meu amor foi-me comunicado fora de todas as hipóteses, no fundo deste bosque. Esconder-nos-emos onde ninguém nos venha encontrar, levá-lo-ei comigo, vou raptá-lo para que mais ninguém saiba onde nos encontrar. Transformar-nos-emos em lobos selvagens, beberemos a bebida da fonte mágica que nos arrancará a pele e as vestes, que nos fará crescer as pernas, os pêlos, as mandíbulas e as garras afiadas e nunca mais seremos vistos até ao fim dos nossos dias. Esta sim, esta já é mais uma das muitas imagens que me foram comunicadas à saída da carruagem depois da chegada da importante figura. O convite que a floresta me faz é igual ao do sonho. Os mutilados e alguns dos muitos feridos caminham no bosque atrás de mim com perguntas acerca da terrível devastação que caiu sobre a cidade. Trazem consigo pás, ligaduras que os defendem das maleitas, arrastam-se como podem uns atrás dos outros todos e atrás de mim, conhecedores do seu dever, da sua função. Vêm sofrer comigo, não querem sair daqui sem obterem as respostas para todas as dúvidas que os assombram. Eu não respondo, não posso responder, tenho que conseguir correr mais do que eles, tenho de largar para trás todas estas pesadas vestes que me atrasam os passos da corrida, que me agitam as vísceras, que me fazem tremer e sentir novamente o esperançoso peso da crueldade e da maleita. Ao longe já só consigo escutar-lhes os queixumes e os passos pesados. A alegria mordaz que transbordava dos seus olhos ficou comigo, é, aliás, a única das lembranças que me pesa ao relembrar-me deste encontro inusitado. Disse-me o sonho que o meu amor estará algures escondido no mais inóspito recanto deste bosque e que não me inquietasse com os meus perseguidores. Avanço despida pelo interior deste corpo escuro que guarda o pretendido segredo. Trago os pés e as pernas tão feridos como no dia do desastre, trago o rosto lavado pelas lágrimas que nascem descontroladas, tenho a alma ferida a aguardar ansiosamente a remissão. O sábado destruidor semeou todas estas causas na minha vida, semeou as imagens da destruição e da dor com uma violência tão insuportável que me dotou a alma com as cores mais sombrias do pecado. Matei tantos e tantos com a minha vontade feita assim de luz, mutilei e feri milhares, alterei as leis com que se olhava o mundo e as coisas da fé, alterei os demónios que me perseguiam, arranquei a muitos as suas asas negras e quebradiças, mas outros tantos bem mais poderosos e arrogantes tomaram conta do que restava de mim. Ouço os anjos negros a cantarem músicas esperançosas com as vozes do coro da catedral, como se fossem puros e não pecadores. Cerro os olhos e continuo a correr na direcção desse vazio, na direcção do meu amor que sei que se encontra algures por aqui escondido, como no sonho, como num sonho que quero tornar realidade. O tempo passa e não passa mais depressa do que devia. O pesadelo não terá aqui nenhum final nem nenhum princípio, será apenas a continuação de tudo o que ainda está por acontecer. As folhas escondem alguma coisa acolá junto aos penedos, dir-se-ia a entrada de uma pequena gruta. Ao fim destes minutos eternos de corrida, destas pernas pintadas uma vez mais com as cores do sangue, vou finalmente encontrar-me cara a cara com o meu amor, tal como no sonho desta madrugada, tal e qual como no sonho mentiroso que fiz questão em não comunicar ao mestre Bernardo. Tudo está bem quando acaba bem:

(…) quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja...

quarta-feira, 5 de maio de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação VI

As leituras que se fazem dos sonhos não são para trazer a discussão neste momento. Arrancámos para dentro das entranhas do receio e aí montámos uma obra verdadeira. Nem pensar deixar escapar este presente, deixar fugir esta hipótese, largar as cordas que nos prendem à novidade deste poder. Encharcadas até aos ossos, as vozes que escutámos avançaram como guerreiras pela solidão das nossas vidas. A vingança estava gravada nos seus corpos molhados. Lágrimas de sofrimento, de ódio, de raiva e de satisfação misturaram-se em nossos olhos, limpando-nos a cara, as mãos e os braços doridos como uma bênção. E foi assim que depois de termos provado o sabor agridoce do veneno uma primeira vez não houve forças para lhe resistir. Bebemos de bom grado todo o conteúdo da garrafa de uma só vez até tudo se repetir novamente, até tudo se toldar de novo com as bonitas cores da cinza.

*

Se Constança acordar agora será igual à parte final do meu sonho. Não largará uma única palavra, arrastar-se-á nua e semi-sonâmbula para o quarto-de-banho sem dar por mim. Se Constança acordar neste preciso instante e tudo acontecer como no sonho, entenderei esta loucura como um sinal seguro de que estamos ligados a estas histórias do passado.

*

- É aqui que o senhor ministro nos virá receber. Soltará as suas vaidades antes dos nossos bons-dias, antes até de entendermos como se fez aqui chegar.

- Caríssimos, como vão? Espero que esta pequena jornada não vos tenha dado desconforto. Vinde comigo, caminhemos juntos para gozar as delícias desta esplêndida manhã de Primavera.

O salto que dei fez prova da minha surpresa. Tal como Fernanda antecipou eis que, surgindo de nenhures, o ministro chegou como uma sombra.

- Bom dia! É sempre uma grande honra podermos falar consigo.

Avança com determinação para o interior do pequeno bosque que esconde uma vista maravilhosa sobre o mar.

- Venham, acompanhem-me neste passeio, alegrem-me a manhã com a vossa companhia.

Os sons misturam-se. Fernanda levanta levemente a pesada saia para caminhar com maior facilidade. O ministro embrenha-se num passo acelerado pelo interior do arvoredo, pára, olha para trás na nossa direcção.

- Só mais um pouco, mais alguns instantes e chegaremos ao local que vos quero mostrar.

Ao escutar estas palavras do ministro, como se estivesse à espera delas, como se de uma deixa se tratasse, Fernanda desatou a correr na direcção mais escondida do bosque. Durante breves momentos só o barulho dos seus passos fazia adivinhar o local para onde fugiu. Um outro instante veio apagar de vez os ruídos da corredora fugidia.

- Deixe lá, não ligue mestre Bernardo, em breve voltaremos a ter a sua companhia. Venha cá que temos muito que conversar.

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terça-feira, 4 de maio de 2010

LIVRO DE BERNARDO

( livro de Bernardo - primeiras palavras de Fernanda durante os dias em que se manteve inconsciente ):

O sonho não se acalma antes de sentirmos as palavras descobrirem a fonte onde jorra a vontade, o desejo a solidão. Quando nos engole começamos a entender este outro lugar do qual fazemos parte sem fazer. Antes de sermos varridas por mais uma queda que nos lança precipício abaixo, o corpo estremece, perde-se o equilíbrio e a razão é despedaçada ao longo dessa rápida e curta viagem. Mais do que o medo ou o receio de deixarmos de ser, o isolamento que nos consagra é raro e cortante, as sensações desaparecem por toda a parte, o corpo é desintegrado, a vertigem surge implacável, e nada faz mais sentido desde esse instante. Desaparecemos, voltamos a aparecer, abraçamos o vazio com uns braços que já não nos pertencem, voamos por segundos, a luz não é igual a nada que conhecemos antes, sobrevoamos as árvores cinzentas que surgem por baixo de nós. Começamos a dominar o voo, rasamos as copas velozmente para logo de seguida nos erguermos até um céu que não está lá. Recuperamos o fôlego e picamos uma vez mais em direcção às árvores feitas de um algodão cinzento muito claro, carregadas de folhas cor de cinza e de carvão, saímos pelo outro lado da floresta como corvos, muito negros e de bicos rijos e pesados. Transformamo-nos uma vez mais num ser humano desnudado de braços atirados para trás, colados ao corpo, ganhando velocidade. Por aqui nos gostaríamos de abandonar, viajantes desta liberdade inquietante. A solidão regressa, pesada e violenta como nunca, cobre-nos com a tirania da sua frieza. Os laços que nos uniam são cortados e quando já nada nos prende a coisa alguma caímos descoordenadas no meio de um imenso nada. Por tempos que não conseguimos descrever ficamos perdidas, esquecidas de tudo e de todos, como uma semente expectante. Ao contrário dela, não nos lembramos do que fomos antes e tudo se transforma num vazio profundo, numa ausência, numa tranquilidade lancinante. Muito lentamente começamos a acordar dentro do próprio sonho, voltamos a nós e ficamos frente a frente com as imagens dos nossos receios. Passeamos por entre elas como se não fizéssemos ainda parte de si, como viajantes desconhecidas, como meras espectadoras de uma opereta sem sentido. Recomeçamos a escutar, a entender sons melodiosos que nos descobrem no vazio. Levantamo-nos e tentamos descortinar a sua proveniência. São vozes que cantam tão afinadas como pardais, são pássaros humanos, são pessoas anjo ou anjos em forma de gente, ou fantasmas que não procuram assustar, mas receber. Na escuridão melodiosa perseguimos por largos momentos aquelas vozes ímpares que nos atraem como uma luz. Não vale a pena parar, não temos membros mas continuamos a avançar até que a melodia sobe de volume, fica ali mesmo à nossa beira, aguarda a nossa chegada. Alguém liga umas luzes fortes no exacto momento em que somos esbofeteadas com força cinco a seis vezes em cada um dos lados do rosto. São tão inesperados e intensos os bofetões que a pele sai descascada das faces, arrancada aos pedaços em cada agressão. Ficamos cara a cara com o futuro assim sem mais nem menos. As imagens deixam de ser estranhas e começam a acontecer como desejámos, as palavras fazem pressão para chegar até à boca e gostam do atraso que resulta entre o momento em que os lábios as desenham e o tempo que demoram a sair. Antes de tudo começar a acontecer tal como queremos, destroem-se todos os laços e perdemos a fala para melhor observarmos o espectáculo que acabámos de provocar.

Pernas grandes, o senhor pernas grandes e mãos pesadas acaba de tombar desgovernado pelas escadas abaixo com estrondo e só parou no meio dos gritos que lança para o céu pedindo ajuda. Choros e guinchos de toda a espécie abraçaram o acontecimento oferecendo-me desta forma profana a nítida sensação de ter acabado de assistir à primeira de muitas transformações escondidas nos meus sonhos. Agradeci vezes sem conta a luz cinzenta desse dia. A escuridão tenebrosa surgiu alimentada pelo medo e pelo ódio. O mal para o meu pai chegou, finalmente, a tempo de dar descanso à minha sede. Abriguei-me na segurança que me providenciou esta demonstração. Foi o bastante para começarmos a ganhar coragem suficiente para voltar a flutuar no doce sabor da minha privacidade, incendiando os sonhos com tanta raiva que nos perdemos nas poucas hipóteses de acalmia. Mais verdadeiro não há e preocupamo-nos com o que não conseguimos dizer, preocupamo-nos com o que sai dos nossos segredos abrigado nesses sonhos cinzentos Deixamos os amigos de parte, a esperança, os pensamentos e mergulhamos nas delícias de todo aquele cinzento que nos abre as portas durante a queda.

Como são serenas as paisagens, elegantes os voos dos pássaros, elegantes as corridas das crianças que despacham os recados, elegantes os navios que sobem aos céus com as suas velas deitadas, elegantes os desenhos que fabricam ao lado das nuvens que conseguem alcançar, elegantes os gigantes que avançam por caminhos largos e cinzentos, por caminhos organizados por luzes intensas, por caminhos cruzados por outros caminhos, mais altos, mais baixos, mais pequenos ou maiores, elegantes as pessoas que correm e que andam, que se movem neste bailado frenético e irreal, elegantes como formigas a avançarem para o interior da terra, elegantes como as abelhas, elegantes como os peixes que se aventuram à superfície, elegantes como os cavalos que galopam livres pelos campos. Possuem animais estranhos que montam depois de abertos. Recebem-nos para depois os deixarem partir. Não se falam, não se conhecem, gastam o tempo e envolvem-se numa teia sem paixão. São elegantes na sua espera e as suas aspirações são elegantemente esquecidas. Passeiam uns pelos outros elegantemente perdidos e quando a noite os atinge estes viajantes não abrandam o seu empenho em continuarem elegantemente perdidos. Correm velozes em direcções iguais e opostas, avançam como punhais, arrastam-se apressados como animais esfaimados, uns por sobre os outros, como insectos, como pulgas, como escaravelhos elegantes. A sinfonia é espantosa. Por cima de toda esta multidão foram lançados milhões de invisíveis desejos de mudança. As noites são dias por aqui, não se aprecia o descanso e a morte, quando aparece para o fornecer, é observada em silêncio e como inimiga. De todas as tarefas deste povo esta é a mais escondida e esquecida. Quando os visita, ficam indolentes como pirilampos esquecidos da luz que os ilumina.