São os libertadores das profundezas que delas se escapam para vir salvar o mundo. Invisíveis e poderosos destroem tudo ao sair das entranhas da terra. Onde se esconderam todos estes anos? Vieram-me visitar tantas e tantas vezes à cela durante a noite, durante as madrugadas em que gemia desesperado por um auxílio. Uma voz me ia avisando, depois duas e três e depois milhares, que todos iríamos ser julgados e abandonados, lançados como pequenos grãos de nada soprados pelo vento gelado que vagueia solitário no dia do juízo final. Não dormi, não dormi, não durmo agora, não sinto frio apesar de tudo. Tudo pega fogo. É como já foi, como já foi. E depois ninguém consegue apagar as línguas amarelas e vermelhas que querem chegar aos céus, que querem voltar para junto de quem as enviou, que lhes envia as almas de todos aqueles que já matou. E os senhores médicos empurraram-me e a todos os outros também. Empurraram-nos e indicaram o caminho da luz, do dia em liberdade, em liberdade, e como prova de que não minto, de que não minto, os libertadores das profundezas arrancam as caras às casas e às igrejas, atiram os telhados, as janelas e as portas ao chão, arrancam todas as pessoas lá de dentro para lhes lançarem os restos das paredes para cima. E nós fazemos o que os bons senhores médicos nos disseram. Ficamos sossegados no centro da praça a assistir ao trabalho dos libertadores. E este ruído estranho que continuo a escutar, este ruído acaba com o resto das minhas forças. Este martelar que ouço e que se repete mil vezes sem nunca parar, que se repete como se as obras nunca terminassem dentro das minhas ideias. Agora ficamos aqui à espera dos senhores invisíveis que nos vêem buscar. Até alguns dos senhores médicos já aqui se encontram à espera deles. E que dia de festa, e são tantos os que nos vieram visitar! A praça tem tanta gente como no dia em que o hospital pegou fogo. As caras das pessoas que vieram ver a cor alaranjada da noite eram bonitas. As caras que estão aqui deitadas ao pé de nós são diferentes, são caras que temem os libertadores, que temem os libertadores, e como não os conseguem ver, como só lhes sentem a força que tudo destrói, que tudo limpa e desmancha, não mostram a alegria dos que nos visitaram na noite do incêndio. Nas noites em que estes senhores invisíveis me fizeram companhia, ensinaram-me tudo o que de mais importante havia para ensinar, sabem mais sobre todas as coisas do que todos os reis ou rainhas deste mundo. Contaram-me tudo acerca deste dia em que juntos iriam sair das profundezas da terra para nos vir libertar. Só vai ser possível perceber a nossa verdadeira dimensão pelas forças que serão libertadas ao sairmos das nossas habitações escondidas, disse um dos libertadores numa das muitas visitas que recebi. Avisei o Paulino e raspei na parede com as minhas unhas as histórias todas que me foram segredadas, e quantas mais unhas gastava, mais noites e dias me deixavam fechado na solidão gelada dessas únicas companhias. Arranquei os pedacinhos todos na procura das palavras, na procura das palavras, até que no escuro, com os olhos quase cegos, uma dessas noites, os libertadores se tornaram perfeitamente visíveis. Foi assim que os comecei a conhecer melhor, foi assim que me contaram todas as peripécias deste dia, e quanto mais as explicava aos senhores médicos, quantas mais noites e tormentosos castigos me eram servidos em resposta, até que me deixei disso e cortei a língua para não mais ter vontades de contar. Mas deixar de escrever com as unhas e com o sangue dos meus dedos, isso não consegui evitar. E eis que o dia chegou, e que sinto um pouco de acalmia nas marteladas, nas vozes e nos castigos. São numerosos os que hoje se reuniram para nos vir salvar. A qualidade do seu trabalho e da sua caminhada fica marcada pelo céu que perde a cor, pelo rio que fica seco e por uma cidade totalmente desmoronada. É só desta forma que o trabalho dos libertadores pode ser correctamente realizado, só desta forma. Apagar, tudo apagar, destroçar, despedaçar, destruir, aniquilar, para que se pense a desgraça, se equacione a miséria e a infinita insignificância daquilo que somos, daquilo de que somos construídos, de qual o nosso verdadeiro lugar neste mundo, nesta cidade e nesta praça. E se as águas do rio lhe tinham sido roubadas, também a vontade em lhe voltar a encher as entranhas foi rápida. Tão aniquiladora como todas as outras forças acordadas na saída dos libertadores das suas casas escondidas, também a forma como encheram o leito do rio com as suas águas provocou mais uma intensa demonstração do seu imenso poder. Saíssem sons decentes pela minha boca mutilada, que daria graças e muitos vivas pela glória deste dia. Sempre louco, sempre louco, o Ramiro velho não tem como ser tratado, é deixarem-no apodrecer para ali escondido, não fossem os seus ricos e poderosos patronos, e já teria aparecido morto na cela uma dessas noites de ataques violentos e de constantes massacres e marteladas na cabeça do enfermo. E sempre as visitas repetidas dos libertadores a contarem-me baixinho e no meio da maior das barafundas, como é que tudo acontece, como tudo se passa, e como tudo é, afinal, bem diferente daquilo que os mais doutos e instruídos consideram. Vão agora poder explicar tudo muito bem uns aos outros. Mas como, se não sabem nem imaginam que tudo se deve a estes gigantescos e poderosos libertadores que a todos nós, afinal, vieram salvar!
Berrarei já a toda a multidão aqui reunida uma centena de vivas aos libertadores!