terça-feira, 20 de julho de 2010

Villa dei Misteri



Avançar pelas ruas de Nápoles é um autêntico desafio. Tentamos ficar atentos ao trânsito e ao percurso mas não existe maneira de deixarmos de ser atraídos para a beleza da cidade. A saída faz-se por uma pequena rua de sentido único onde se encontram muitos carros mal estacionados e onde tantos outros procuram desesperadamente por um qualquer lugar. Neste período de férias acabou por ser uma sorte encontrar este hotel com lugares cativos pois poupamos uma série de dores de cabeça ao tentar encontrar local para deixar o carro. Chegamos ao largo junto à via Vitorrio Emanuel III e surge-nos imponente e principesco o Castel Nuovo. Avançamos para a praça do município e o caos do trânsito citadino impera. Ao chegarmos à avenida Americo Vespucci mal se consegue avançar pois o pára-arranca é uma constante. A rua é empedrada como em muitas das nossas cidades e vilas e torna-se desagradável se nos mantivermos assim por muito tempo. Afinal, acabou por não ser muito complicado descobrir a entrada da auto-estrada A3 Napoli-Salerno que nos levará até Pompeia. Razão tinha o simpático empregado no hotel que nos deu uma estimativa de aproximadamente quarenta e cinco minutos para conseguirmos chegar até lá! Constança está mais preocupada a analisar o pequeno mapa da cidade e da costa Amalfitana para onde seguiremos depois. Fica muito concentrada durante as viagens e bebe todos os momentos dos passeios com os olhos brilhantes de emoção. O Vesúvio começa a parecer cada vez maior e acompanha-nos durante todo o percurso em auto-estrada. Ao sairmos para Pompei avançamos pela via Plinio carregada de poluentes cartazes informativos para os turistas, dando conta de pensões com quartos, hotéis, pousadas, campings, restaurantes e todas as demais actividades turísticas da zona. Foi aliás junto ao camping Spartacus que tivemos de inverter a marcha pois a melhor rua para estacionar e entrar na zona das ruínas ficava para trás numa cortada à esquerda em que continuámos em frente. Tem o bonito e sugestivo nome de via Villa dei Misteri, a rua da villa dos Mistérios. Este é, aliás um dos conjuntos arquitectónicos mais bem conservados, com frescos espantosos que nos fazem voar no tempo até esses longínquos anos em que se vivia em comunhão com deuses dionisíacos e com rituais de preparação para matrimónios romanos que ainda hoje carecem de uma correcta interpretação histórica. Adquirimos as entradas com antecedência e resta gozar agora da fabulosa cidade em ruínas. Constança não o sabe, mas quando aqui estive ainda muito novo, fiquei quase tão petrificado como as estátuas humanas que o Vesúvio se encarregou de cristalizar para a eternidade. Era pequeno mas nunca mais esqueci as vozes que me chamaram e me iam dando conta dos segredos daquele trágico dia como se procurassem um amigo para poder dar vazão a tanta dor. Jamais fui capaz de dizer isto a alguém. As palavras andaram às voltas durante alguns meses na minha cabeça e ainda as recordo hoje quase como nesse ano em que aqui estive de visita com os meus pais. Não é fácil descrever uma sensação dessas, ainda para mais sendo tão pequeno como era na altura. Lembro-me vagamente de meu pai achar que eu andava estranho por ter ficado muito impressionado com as estátuas que tinham sido pessoas verdadeiras apanhadas de surpresa pela erupção do gigantesco vulcão. Mal podia ele imaginar que essas estátuas comunicaram comigo como se me conhecessem. Uma delas até o meu nome sabia, várias vezes me chamou Bernardus e tinha um timbre de voz melodioso, igualzinho aos que os realizadores gostam de ouvir nas personagens angelicais ou fantasmagóricas dos seus filmes. E acabou por ser essa estranha sensação de proximidade e de pertença que me causou esse forte impacto, mais ainda do que ver de perto as estátuas outrora gente. Era como se eu começasse a sentir uma estranha familiaridade e sensação de pertença com este local onde nunca antes tinha estado. Dei inclusivamente por mim a percorrer algumas das calçadas e ruelas das ruínas como se sempre por elas tivesse passado, como se fossem estas as ruas que eu tão bem conhecia e que todos os dias usava para ir até à escola e depois voltar a casa. Nada disto me tinha alguma vez acontecido, e foi assim grande o choque, tão novo que era. Fiquei a perceber que existem na vida momentos em que as coisas normais do dia-a-dia desaparecem para dar lugar a outras bem menos explicáveis, e que delas temos medo de dar conta e evitamos tentar explicar o sucedido mesmo às pessoas que mais nos adoram, aos próprios pais que tudo sabem, ao amigo mais especial, até mais tarde a quem abrimos o coração de par em par.

- Bernardo, é por aqui, anda! Olha, está ali a indicação da entrada e já se forma uma pequena fila. Não te esqueças da máquina fotográfica, fecha bem o carro e vem ter comigo que eu vou já andando antes que aqueles turistas todos nos passem à frente!

Constança, que quase não falou durante o trajecto de Nápoles até aqui, dá agora as instruções para que se dê início à nossa jornada matinal de visita. Estou com alguma expectativa do que nos estará reservado durante a visita. Será que mesmo agora, passados todos estes anos, a minha cabeça voltará a pregar-me a mesma partida e vozes surgirão dentro de mim?


segunda-feira, 19 de julho de 2010

TERCEIRO ACTO - continuação XII


Não existem antecedentes que me façam pensar numa outra solução que não esta. Não entendo nenhuma das minhas vontades. O sabor da vida aventurou-se por outras paragens e cansou-se desta minha inquietude. Os desejos de muita morte, de muita destruição serviram-se de mim como o leito de um rio ávido da água que o habita. A escuridão e o ruído surdo dos animais que vivem nesta gruta começaram a invadir-me os medos. Escuto-os agora ampliados até à exaustão. Não compreendo por que me atingiu esta súbita ideia de fuga e este receio de que algo de muito mau estaria para me acontecer. Já não prevejo o próximo momento nem adivinho acontecimentos futuros com a regularidade destes últimos meses. Ao coração colou-se este sentimento novo que me enlouquece e me altera. Os últimos dias passados na companhia de Bernardo não foram iguais aos do momento de destruição da cidade. A surpresa desse encontro foi substituída por este crescendo de paixão e de amor que não sabia ser possível sentir. As nossas ideias e palavras seguiam idênticos caminhos, idênticos entendimentos sobre coisas tão simples como o calor dos dias ou sobre assuntos mais complexos como esta incompreensível capacidade que está escondida nos nossos sonhos. Guardar este sufocante peso no peito começou a ser muito doloroso, bem mais do que alguma vez fui capaz de supor. O seu rosto tinha-me sido revelado em sonhos bem antes do momento em que nos encontrámos pela primeira vez na grande praça no dia calamitoso. Os piores receios abalaram de mim nesse exacto instante, os seus olhos chegaram para me avisar de que não mais seria necessário recear a morte ou a dimensão da dor que ela provoca. Percebemos a força contida naquele breve instante em que os nossos olhares se ligaram. Já tínhamos sido ou iremos ser um só algures neste caminho. Ao fugirmos de tudo, ao cavalgarmos para lá daquelas sepulturas e chagas, procurámos apenas a chave dessa porta, tentámos somente descobrir onde estaria escondida a passagem secreta para esse outro lugar, para esse outro instante onde pertencemos um ao outro sem limites ou barreiras.

Dei por nós a voar no seu cavalo para longe de toda aquela loucura como só nas mais fantásticas óperas pode acontecer.

Ao colar-me ao seu corpo voltei a sentir-me segura, tranquila e em paz com tudo o que tinha até então ousado desejar.

Passeei as minhas mãos ao seu redor onde me abracei. Deixei as minhas mãos passearem no seu corpo até que os braços o enlaçassem por completo. Chegou-me o cheiro doce da sua pele e deixei o rosto roçar pela maciez dos seus cabelos. Estreitei o abraço, e quando o meu corpo sentiu o calor do seu, aconcheguei a face no leito das suas costas e nele procurei refúgio como uma criança perdida. Fechei os olhos para melhor sentir a verdade, ainda que por breves momentos, daquilo que para mim não poderia ser senão um sonho, um sonho que como todos os sonhos, bons ou maus, acabam sempre por ter o seu fim.

Foi então que de cansaço e paz desfaleci e deslizei pelo dorso do corcel em direcção ao silêncio e à escuridão.

Os seguidores não conseguem dar conta do recado, não descobrem os possíveis caminhos por onde Fernanda possa ter avançado e andamos por aqui às voltas sem obter resultados. O ministro abandonou o local mas as suas ordens foram bem explícitas. Só sairemos daqui depois de encontrarmos Fernanda. Os ramos, as muitas silvas, o mato denso e as poucas clareiras que se vêem no centro destas frondosas árvores não dão qualquer sinal da sua passagem, nenhuma indicação de que, por aqui, alguém tenha passado recentemente. A jovem desapareceu como um fantasma, parece ter sido engolida pelo bosque ou então ter-se-á transformado numa espantosa árvore e está divertida a rir-se de todos nós. Não encontro outra explicação para esta surpresa. Gostaria que estes ajudantes desaparecessem, gostaria que este dia fosse um outro que não este, gostaria que Fernanda e eu pudéssemos estar finalmente juntos num lugar afastado de tudo e de todos, a sós e em paz. As palavras que lhe escutei nos dias após a queda foram tremendas e tiveram um impacto profundo na minha maneira de encarar sonho e realidade. Foram demasiado certeiras, surgiram do seu mais profundo íntimo e pelo seu conteúdo desmascararam todas as minhas visões e todos os meus dogmas. A vida abre de quando em vez estas surpreendentes portas pelas quais nos atrevemos a avançar. Transformamo-nos para sempre no que já éramos sem o saber, no que já fomos mas que nos era impedido de recordar ou no que seremos sem termos ainda acontecido. Num instante tão minúsculo quanto breve, mas suficientemente assustador, ficamos paralisados, boquiabertos e sem capacidade de reacção.

Nada nem ninguém voltará a ser visto como era antes.