terça-feira, 28 de julho de 2009

PRIMEIRO ACTO

O Homem está doente

Pois está mal construído

É tempo de o despir, de o pôr a nu

De o descarnar até que a sua bestialidade lhe seja retirada

Para que deixe de se coçar até à morte

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Deus, e com Deus os seus órgãos

Sim, os seus órgãos, todos os seus órgãos

Pois, mata-me se assim o desejares

Não há nada de mais inútil do que um órgão

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Quando lhe construíres um corpo sem órgãos

Então conseguiste destituí-lo de todo o automatismo

Devolveste-lhe a sua verdadeira, perpétua liberdade

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Quando olhei para o lado reparei que Felício não conseguia andar mais. Estava estafado. Os penedos e as encostas deixaram marcas nas pernas e nas patas cansaços tremendos. Desde que abalámos com destino ao sul, faz já dez dias, as palavras foram-se esgotando e os receios tomaram novamente conta das nossas vidas, dos nossos rostos. Em Lisboa precisam de mãos e de corpos para dar crescimento às vontades do rei. A capital destapa as suas virtudes aos viajantes no dorso das colinas e no perfumado cheiro a Tejo que a suaviza. Para um homem como eu, habituado pelas memórias de tantas viagens a muitas urbanas concepções, o privilégio de regressar a Lisboa é sempre inexplicável. A luz e o azul do céu são aqui claramente diferentes de todas as cidades que já visitei. Os meus sonhos irão ter aqui o seu repouso. Já não me sinto com forças para continuar a peregrinar por esta Europa cansada e desorientada, doente e desalentada. As inovadoras práticas de medicina e cirurgia operatória que fui bebendo e praticando com tantos mestres em benefício da ciência foram conhecidas na corte de el-rei, e logo pelo seu ilustríssimo ministro Sebastião de Carvalho e Melo. A minha família sempre foi a medicina, o meu alimento a dor e o sofrimento, a minha esperança, a esperança em poder contribuir para o aumento do conhecimento acerca dos mistérios do sofrimento e dos padecimentos. São inumeráveis as maleitas e as doenças tormentosas que atacam a frágil natureza dos homens.

As igrejas agradecem tantas almas em oração. No dia de hoje, são milhares os que se deslocam em preces acompanhados pelos parentes, por amigos e conhecidos, em celebração de mais um dia de Todos os Santos. A manhã surgiu com uma luminosidade abençoada. Da janela do meu quarto tenho uma das vistas mais espantosas de Lisboa. O bom amigo Lefebvre fez questão de me adocicar as auroras com este mimo. Se me pudesse ser dada uma só vez esta alegria, garanto que morreria feliz pelo prazer obtido ao vislumbrar este cenário deslumbrante. E a azáfama do povo crente e devoto que se manifesta nestas procissões delicadas, caminhando em gomos ordenados e civilizadamente organizados em caminhadas de oração.

Tenho de me preparar para a recepção. São grandes as ideias de el-rei. Tantos estrangeirados a assumirem protagonismos em áreas tão distintas. Não posso deixar de sentir uma ponta de orgulho e vaidade ao ter sido convidado para tamanha tarefa. Nada mais me faria retornar a esta Lisboa com tanto prazer.

As histórias das cruéis vontades e desumanos actos de Dom José e do senhor ministro serão verdadeiras, bem o sei. Na minha consciência assumi que a necessidade em honrar e servir o meu país vai muito para além dessas suas crónicas suspeitas. Farão de mim um instrumento, mais um de tantos que alinhavam a construção da grandeza e do requinte faustoso que conceberam para este nosso país. E se as coisas não correrem conforme imagino, será sempre possível aventurar-me definitivamente na aventura brasileira, onde o irmão Bernardo e os primos Fernandes de Alorna desde há muito me tentam com os seus fantásticos relatos a testemunharem um mundo novo verdadeiramente extraordinário.

Ter estado afastado todos estes anos de Portugal foi muito importante para mim. Dormi mal esta noite. Ainda o cansaço da viagem. Já não sou propriamente um jovem.

As decisões serão tomadas calmamente após este dia religioso. Acrescentar esperança nas lides e na educação da medicina no nosso país.

Não consigo deixar de pensar no estranho sonho que tanto me agitou durante a noite. Já há muito tempo que não passava por mim um tão forte pesadelo. No meio do chão corpos destroçados e ensanguentados aos milhares. Homens, mulheres e crianças no meio de fogos correndo com os corpos a arder na minha direcção. As mais estranhas situações de desespero com gente a passar desalentada em todas as direcções, cadáveres às centenas formando torres de corpos. Por debaixo deles, fogueiras eternas eram atiçadas por pequenos monstros negros que se divertiam como demónios acabados de chegar do inferno. E tudo isto no meio do mais enigmático dos silêncios, de cinzas e de muito vermelho do sangue derramado que como um rio amornava o pavimento. Por duas vezes acordei, por duas vezes voltei a adormecer e voltei a sonhar o mesmo desesperado cenário. Dei por mim a receber este dia bem mais cedo do que antecipei. Estes pesadelos conseguem-me atormentar mais do que o desejado e tenho-lhes muito respeito. Considero-os formas secretas de nos serem comunicados insondáveis mistérios. Alguns acontecimentos já me foram desta maneira participados extraordinariamente. Embrulham-se em sonhos que me quebram as rotinas como um pressentimento incómodo. Alguns deles surgem-me durante a luz do dia. Sem qualquer explicação, a realidade transfigura-se alterando-se completamente. Calafrios sombrios mudam-me as temáticas das conversas, obrigam-me a resguardados movimentos e a recatadamente procurar o refúgio de uma sala ou de um lugar abrigado onde permaneço em meditação respeitosa.

Os sonhos desta noite enquadram-se perfeitamente nessas estranhas informações que me visitam a alma de quando em vez. Rostos amargurados e de olhares vidrados, quase enlouquecidos pela dor, avançavam pelo meio de destroços e de montanhas de detritos de edifícios despedaçados. O tempo não faz qualquer sentido, como, aliás, nunca faz, nestas preocupantes comunicações da alma. E o intrigante afastamento do mar apavorado com tanta estranheza. O rio recuou deixando encalhados alguns dos navios de grande porte que se encontram em frente ao cais da cidade. Entulho e mais entulho amontoado nos locais por onde passaram as famílias em direcção aos templos, muitas habitações parcialmente destruídas, igrejas e catedrais destroçadas, incendiadas e sem abóbadas a protegerem-nas. A minha sanidade não me permite a ousadia de comunicar estas imagens a ninguém. Sofro! Sei que me chamariam de louco ao provocar o pânico com estes relatos. Quem no seu perfeito juízo pode antecipar o que quer que ainda esteja para acontecer? Só loucos ou os totalmente desprovidos de espírito científico se aventuram na ousadia de darem a conhecer essa realidade a outros.

Onde acaba o seu próprio bem-estar?

Onde se esconde o meu próprio bem-estar?

E se as coisas se passarem exactamente como no meu sonho preocupante? Se tudo acontecer com toda a vertente trágica de anormais dimensões que assim me foi dada a conhecer? Quantas vidas poderão ser salvas com o aviso?

Mas qual aviso? Aviso do quê? E quem é o homem que avisa o homem a quem em sonhos foi dado a conhecer que a maior das calamidades se vai abater sobre a cidade do Tejo. Que será quase totalmente destruída, arrasada e aniquilada por forças que nem este homem sabe como se formarão!

Só de um louco! E ainda mais, um louco médico de renome, reconhecido e com planos de futuro e de coordenação neste reino cuja capital lhe surgiu tão mutilada no denso pesadelo desta madrugada.

Seria louco se desse esta informação a quem quer que fosse. Um vazio sombrio paira por este meu corpo cansado. Nada existe na ciência, seja ela qual for, que possa dar explicação para estes fenómenos da alma. Só eu sei o que sinto, o que sonho, como o futuro mais próximo me é dado, por vezes, a conhecer. Dói-me, desarticula-me os movimentos e assusta-me imenso. Não dominar estes instintos do tempo, as continuadas e sentidas formas de entender este espaço em que nos movimentamos é para mim algo que muito me angustia, mas que, estranhamente, me tranquiliza.

O certo, o seguro, pelo que sei e por aquilo que já me foi dado a conhecer, é que, por esta cidade, um sopro sombrio em breve passará. Todos os seus poros ficarão entupidos por uma imprevista e inusitada doença.

Mais assustadora que esta visão amargurada é não me sentir capaz de chocar Lefebvre com o princípio absurdo desta lastimosa certeza.

Nos meus dedos sinto agarradas as poeiras dos detritos e na memória a frescura amarga daqueles silêncios aterradores. O dia ainda mal acordou e sinto este aperto de dúvida que me apunhala a consciência. Tenho de partilhar com Lefebvre este palpitante desespero. Aos anos que nos conhecemos. Isso certamente pesará na crítica que fará aos meus receios. Estranhas são, por vezes, as misteriosas linguagens que habitam nossos sonhos. Que tenebroso cataclismo contém em si forças suficientemente capazes de destruir como uma guerra uma cidade inteira. Nenhum combate pode originar de uma só vez tantos mortos, tantos feridos, tantas almas incrédulas e desesperadas. A quase totalidade dos conventos da cidade totalmente destroçada. E o mais estranho de tudo é o incrível detalhe e pormenor de tudo o que me foi dado a testemunhar. Os suores e as tremuras atacaram-me na primeira das fases deste sonho. Acabei por despertar alagado em suor, tal a intensa realidade com que as imagens, texturas, odores e pavor me foram dadas a conhecer. Não foi fácil abrir os olhos e sair do meio de tanto desalento. O meu corpo permaneceu insensível à dor física, anestesiado, quase embalsamado, deitado ao lado de centenas de cadáveres. Tudo o que me era dado a conhecer começou pelos ruídos iniciais de vozes remotas que gemiam com tanta dor.

E o hospital de Todos os Santos, local que reconheci imediatamente, pois ontem mesmo de lá já bem tarde nos fizemos sair, desmoronado por cima das camas dos pacientes, por cima de mim, mostrando-nos um céu cujo azul se toldou num opaco e irrespirável cinzento. Mantinha-se o meu corpo e a minha mente na dúvida suprema por mais quatro ou cinco minutos. Onde estava, afinal, o meu corpo, a minha vida? Espalhado no meio dos escombros, como mais uma vítima incapacitada e morrente ou deitada na cama deste aposento solene da apalaçada morada de meu querido amigo Lefebvre? A razão abandonara-me, deixara-me atordoado por segundos com o tamanho de uma eternidade. Mantive-me no leito, atordoado, transpirado, inseguro como só estes momentos me conseguem colocar. Aguentei-me acordado a olhar a luz que a lua fazia entrar pelo quarto sem pedir licença. Manteve-se ali a fazer-me companhia até que o sono me voltou a transportar para o infortúnio pela porta dos sonhos.

Os passos, os muitos passos desorientados, os descalços pés, as correrias, os atropelos, os tropeções, as quedas desamparadas e desorientadas, as mãos que procuram outras mãos, alguns braços, muitos rostos e faces perdidas, muitas figuras desalentadas que, como fantasmas, deambulam pela amálgama de tanta destruição. A Sua mão não será suficientemente poderosa para evitar que os apetites dos infernos se abatam justamente neste dia perante tantas almas crentes e devotas? E os rostos das crianças já sem vida, das mulheres que aguardavam a felicidade da maternidade que assim viram negada, dos solitários sobreviventes assustados que marcham cépticos perante o cenário que lhes é assim servido, sem piedade ou misericórdia? Não se compreende!

Alimento uma esperança fugaz que este atormentado pesadelo não seja como os outros. Mas o peso com que a realidade lhe vinha colada é demasiado intenso. Seria doce se dele apenas me ficar em memória a recordação de uma noite mal dormida.

A beleza deste rio e a maravilhosa cor desta manhã não são cenário para um drama com as proporções deste horroroso pesadelo. Estas imagens não fazem aqui qualquer sentido. Oxalá assim possa o destino manter segura a calma edílica deste primeiro de Novembro de 1755, com a graça do Senhor, ámen!

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Poema sobre o desastre de Lisboa

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(...) Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!

Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!

Exercício eterno que inúteis dores mantém!

Filósofos iludidos que bradais «Tudo está bem»;

Acorrei, contemplai estas ruínas malfadas,

Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,

Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados

Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados

Cem mil desafortunados que a terra devora,

Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,

Enterrados com seus tectos terminam sem assistência

No horror dos tormentos sua lamentosa existência!

Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,

Ao espectáculo medonhos de suas cinzas fumegantes,

Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento,

Que de um Deus livre e bom requer o discernimento?»

Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:

«Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes?»

Que crime, que falta cometeram estes infantes

Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?

Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios

Que Londres, que Paris, mergulhada nas delícias?

Lisboa está arruinada, e dança-se em Paris (...)

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Voltaire - Poème sur le Desastre de Lisbonne (excerto)

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Neste dia tudo ficará bem, eis a minha esperança, tudo ficará bem neste dia, eis a ilusão. Os cães não pararam de ladrar toda a madrugada.

Jurei, quando visitei Pompeia, que por cada uma daquelas pedras, por cada uma das esquinas ou das paredes que se mantiveram incólumes ao peso da tragédia, uma alma me dava conta de como a morte sorrateira a visitara. E todos os gritos, os parentes desaparecidos, os sofrimentos transformados em estátuas de dor divina, perpetuados em abraços silenciosos de humana incompreensão, estavam ali colados por toda a parte, e colaram-se estranha e silenciosamente ao meu corpo e à minha alma, questionando ainda hoje como tudo aquilo pôde acontecer. E nos meus olhos os reflexos das imagens e dos momentos que nunca vivi e nos meus ouvidos as frequências abafadas dos sons que nunca ouvi. Uma morte que nunca me parecera tão viva pelo misterioso peso de todas aquelas lembranças, de todos aqueles silêncios. E, subitamente, a trazer-me de volta à realidade, os cães invisíveis que ladrando raivosamente se faziam escutar por toda a parte. Ontem, tal como em Pompeia, os sons danados desses animais ecoaram vezes e vezes sem conta nas minhas ideias, trazendo-me de volta ao leito pelas duas vezes que acordei do pesadelo. Um pesadelo sem data nem limite marcado, mas que me atormenta agora o acordar como uma visceral promessa de ruína.

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E se me servir desta informação com as cautelas devidas? Será mais fácil proporcionar salvação a muita gente do que se bradar aos céus este desassossego. Congeminar uma estratégia que retire desta casa todos sem excepção. Ir até ao hospital providenciar soluções para retirar enfermos acamados para locais abertos, para os pátios, para os largos onde as habitações, caso alguma tragédia venha mesmo a acontecer, não possam causar-lhes nenhum tipo de ferimento. Tenho de engolir os receios que as minhas vozes da razão vão marcando jocosas na minha cabeça. Não, não senhor, não sou um louco! Apenas respeito estes sinais pois em outras alturas da minha existência se mostraram dignos de respeito. E se me questionarem os motivos para tão estranhas acções, resolverei nessa altura a situação com argumentos inquestionáveis. Direi que por toda a Europa se promovem e antecipam estudos de segurança e que desta forma insuspeita queria ver implementados sem preparação. Por vezes acontecem situações que facilmente poderiam ser evitadas caso estes exercícios fossem por todos previamente compreendidos e executados. Parecem assim bem! Ninguém me chamará louco por via de argumentos tão compreensíveis. E quanto a Lefebvre, merece que a verdade seja toda relatada. A nossa amizade não será destruída por essa informação e sei que os seus olhos não irão ver-me debilitado por estranhas crenças ou pressentimentos bem pouco científicos. Os factos são aquilo que são, e há estranhíssimas maneiras de lhes darmos cobertura. Estarmos atentos aos sinais que nos rodeiam. Por vezes, bastantes vezes, trazem-nos até ao colo informações indecifráveis acerca de tudo, por vezes até acerca do nosso próprio futuro, até acerca da razão que nos trouxe a este mundo e que dele nos irá fazer partir.

Agora chega! Tenho de me despachar para fazer sair desta morada todos sem excepção, para bem longe, para um lugar aberto e afastado de qualquer arquitectura. Tenho de ir ter com o meu bom amigo para lhe dar a entender as razões do meu receio e procurar nele apoio para o encargo.

Esta criada não sabe nada. Não pode saber mais do que as funções que aqui cumpre com bastante eficácia, diga-se de passagem. Disse-lhe para ir rapidamente avisar Lefebvre de que tenho muita urgência em lhe falar de assuntos muito, muito graves e de capital importância. Sei bem que os seus gostos passam por se entreter com as jovens criadas pela noite dentro. Mantém hábitos de aristocrata bon-vivant e as suas alvoradas são quase sempre tardias. Esta de hoje não é excepção à regra. Mas o perigo é demasiado e há muitas vidas que podem ser salvas, cá em casa e, mais importante, no hospital de Todos os Santos. A rapariga parece possuída pelo demónio ao correr desenfreada na direcção do quarto do seu senhor. Devo ter exagerado na forma como a instruí! Tenho de manter alguma tranquilidade, caso contrário tudo pode acabar sem mesmo ter começado, e nada nem ninguém conseguirá ser protegido. Seguramente me encontrarão ao lado dos doentes de espírito com maior rapidez que a da força da tragédia.

Lefebvre, meu bom amigo. Eis que aparece completamente desalinhado e encharcado, mal embrulhado em mantos cremes que a rapariga lhe vai esfregando com risinhos de cumplicidade. Está cada vez mais pesado este meu bom amigo. A sua envergadura física desmente a sua ágil jovialidade. Os oito anos de diferença entre as nossas idades, sendo eu o mais velho, já se vão fazendo sentir. Não consigo evitar uma ponta de inveja pela capacidade de trabalho que Lefebvre sempre demonstrou, independentemente desta sua faceta de homem de vícios libertinos. Olha para mim com um sorriso malandro desenhado no rosto. Meu bom Lefebvre! O azul dos seus grandes olhos ficou mais ténue quando lhe dei rapidamente conta de tudo. As minhas angústias têm novo dono, passaram do meu para o coração do amigo. Abandonou mesmo ali no soalho os trajes húmidos que mal o cobriam, virou-se e correu nu para dentro do quarto. Virou-se novamente na minha direcção em passo acelerado, ainda despido, abraçou fortemente a rapariga que se mantinha incrédula a olhar para nós, pálida de morte. Comunicou-lhe qualquer coisa ao ouvido e beijou-a rápida e apaixonadamente como se o mundo pudesse acabar. Disse-me que esperasse ali um breve instante por ele enquanto se veste. A jovem criada abalou numa desenfreada correria para o outro lado da habitação.

Sempre senti haver algo de estranho em mim. Algo de estranho, de profundamente estranho. Dar-me-ão permissão para preparar todas as tarefas que me aguardam? A cadência ritmada do som dos sinos que a rebate se vão escutando na cidade atravessa todas as divisões da grande casa de Lefebvre dando sinal das várias cerimónias litúrgicas que se vão realizar. Que mais poderia pedir neste momento senão uma amizade inquestionável. Lefebvre vestiu a sua indumentária de trabalho, apenas o casaco justaucorps sem estar apertado na cintura, o colete esquecido, o lenço originado pela gola da sua chemise muito desarranjado e a estranheza dos seus calções justos terminarem à boca das suas altas botas de montar que traz nos pés ao invés dos confortáveis sapatos de couro preto. Bateu-me no ombro comandando de imediato a saída de toda a criadagem para a zona do Terreiro do Paço, para a grande praça que se estende mesmo ali a três quarteirões, depois de descer uma larga escadaria lateral que dava ligação para as cavalariças. Mandou preparar as montadas e confidenciou-me que melhor seria cavalgarmos em direcção ao norte da cidade. Relembrei-lhe a minha vontade em passar pelo hospital para realizarmos a missão que lhe tinha confessado há instantes. Hesita. Sei bem que não será tarefa fácil convencer Lefebvre. Sentiu com receio a firmeza com que lhe descrevi as cores da morte e confessa-me o desassossego que as minhas palavras lhe provocaram. Acaba por dar razão à razão e deixa as raízes do seu medo do lado escondido da vontade.

Cavalgamos com vigor pelo meio do povo organizado como dois loucos embrutecidos. Agora já não há estratégia. Agimos em conformidade com as nossas convicções. É indiscutível que parecemos dois dementes a tentar destruir a bem organizada voz cristã do povo. Agitam-se, vociferam palavras de desagrado à nossa passagem. A minha angústia cresce na mesma proporção das suas fúrias. No meio do meu peito bate acelerado um coração atormentado. Este nosso comportamento é alimentado por uma informação nada plausível e contudo, aqui seguimos, dois homens objectivos e doutos, agindo apenas em função de uma conjectura do espírito. As igrejas estão apinhadas. Parece que toda a cidade se levantou hoje com o mesmo propósito sagrado. O tempo ajuda a que o espectáculo grandioso desta congregação traga às ruas e varandas da cidade o povo inteiro. Ao passarmos junto à Sé catedral reparo no seu pequeno relógio de sol. Por pouco passa a marca das IX. Os sinos hoje anunciam as homilias e não dão informação do tempo. Mas nada disto interessa, contudo, não consegui evitar esta incontrolável necessidade de atrasar o galope de Felício para ler a marca das horas. Mais e mais povo a subir até à Sé, a avançar ordeiro pelas vielas, a continuar a vociferar, principalmente com Lefebvre que parece cavalgar por campos abertos e não no meio de tanta multidão. O seu mestre Dufau mantém-se quase sempre no hospital. O meu amigo, seu discípulo, pretende dar-lhe aviso para retirar das instalações, enfermarias e demais locais o maior número de enfermos possível, ao menos para a zona central dos claustros ou, melhor ainda, para o centro do Rossio à sua frente.

A bonita e grandiosa fachada do hospital esconde e faz já esquecer o incêndio que aqui aconteceu há mais de cinco anos. Não há dúvida que a férrea vontade régia fez milagres no edifício, considerando todas as vicissitudes da empreitada. Ali se encontra Lefebvre no topo da escadaria que dá acesso ao interior do edifício. Vai-me acenando com o braço para que me apresse. É desconcertante a rapidez com que se movimenta aquele corpo de gigante, uma verdadeira força da natureza este bom amigo. Esta vintena de degraus quebra-me o restante fôlego com desrespeitosa facilidade. A respiração ofegante, as pernas que me tremem e um calor húmido que me ataca o rosto. Maldita máquina cardíaca que me incendeia o peito e as têmporas. Um breve e descansado momento, só um pouco de alívio aos músculos e à acção. Avancemos então na procura de Dufau. Qual irá ser a sua reacção?

Lefebvre vem já acompanhado do companheiro Manuel Constâncio, um discípulo de Mestre Dufau. São as mais proeminentes figuras de anatomia que neste hospital prestam serviço. Pelos seus rostos vejo que a notícia da minha noite já foi partilhada. O cumprimento quase frio e bastante distante de Constâncio não me causou estranheza alguma. Insisto que nos acompanhe até ao Mestre. A rapidez dessa reunião pode poupar muitas vidas. Este homem ainda jovem, andará por perto dos trinta, aparentando menos cinco, não ficou incomodado com a informação que lhe foi confiada. Os seus olhos colaram-se nos meus com marcado cepticismo. A ala dos alienados deve ter-lhe passado nas ideias após a confirmação que lhe dei das palavras de Lefebvre. Para ele não passo de um louco em trajes de aristocrata estrangeirado. Pouco me importa! Uma vida só que venha a ser salva será vitória suficiente. O meu empreendedor amigo é que me parece totalmente crente nas mensagens que me foram dadas esta noite em forma de pesadelo. Não esconde nada nem se coíbe em dar ordens ao desbarato para que os doentes comecem a ser enviados para o centro dos claustros. Todos os que não tenham maleitas infecciosas ou enfermidades gravosas que sejam encaminhados para o exterior do edifício o mais rapidamente possível. Do centro da praça podem observar melhor este abençoado e Santo dia que dá nome ao hospital. E mente, afirmando com a força grave da sua voz que esta é uma régia vontade para que a segurança das instalações possa assim ser avaliada. Diria que se sente nele uma luz de insanidade abençoada. Constâncio ficou desarmado e confuso com a rapidez do companheiro e não sabe como reagir. A grande ala central do hospital está caótica. Muitos são os enfermeiros que carregam na memória o dia fatídico do incêndio de 1750 como se tivesse sido apenas ontem. Reagem de maneira instintiva aos berros e às ordens embrutecidas e altivas que Levebvre espalha por todo o lado. Para espanto meu, todos os que neste dia aqui se encontram a prestar serviço começaram a assumir claramente missão de guerra. O povo que segue atrasado a caminho das igrejas que os aguardam, ao passarem apressados pelo Rossio, pára a observar aquele estranho espectáculo. Dezenas de almas adoentadas, loucas e com enfermidades ligeiras ou feridas sem gravidade vão descendo a escadaria e saindo pelas alas laterais da grande fachada Oriental do hospital para o centro da grande praça do Rossio. Deixei de ver Lefebvre, deixei de ver Constâncio, acompanho alguns destes doentes até às duas grandes portas que se abriram para o Rossio e que permitem uma maior rapidez na saída dos doentes. Nem perguntam nada. Alguns dos loucos divertem-se com esta alteração à rotina dos seus dias. Dois acabaram de sair completamente nus pela porta principal. O hospital parece subitamente vivo a verter estas vidas afectadas para o seu exterior com uma inusitada rapidez. Continuo a prestar auxílio aos mais feridos e incapazes na tarefa, mesmo sabendo que toda esta acção se realiza sem um firme fundamento que a sustente.

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