domingo, 25 de outubro de 2009

PRIMEIRO ACTO - continuação XIII

Este rosto, este mistério mais a adensar o dia tenebroso. Esta rapariga ferida e ágil que acabou de tombar por cima do corpo de um dos loucos, esta criatura que acabo de salvar de ser esmagada pelos cavalos assustados que um pouco por todo o lado invadem os espaços e ameaçam a segurança dos que tentam escapar por entre o caos. É um embaraço mais que seguramente gostaria de evitar. A cara desta jovem não me é de todo desconhecida. Envolver Lefebvre não será mais um jogo, e as dúvidas que se levantam nestes desígnios continuam sem resposta, avançam pela realidade, fazem agora parte dela e não me dão qualquer resposta. Foi no sonho que me apareceu, tamanha a minha surpresa ao vê-la aqui bem segura em frente a mim. Estarei já morto? Terei falecido algures entre as cobertas durante a noite e a continuação desta experiência que agora vou acompanhando é toda ela passada do lado de lá das portas do Inferno? Afinal, será isto o meu purgatório, a minha cruz, mas como se tão real me sai o sangue colorido e tão reais se vão escutando estes sons de morte e pesadelo? Nas mãos gélidas desta rapariga consigo sentir uma força que não é deste mundo. É um pedaço de céu que tem guardado no seu coração. Não sei quantos anos viajei para trás quando toquei no seu pulso e a puxei com vigor para longe do perigo que não via. Revivo as imagens de muitas das experiências da minha vida, de muitos dos locais por onde já passei, sem opção e sem drama. As imagens ficam pequenas. Como se fosse feito de luz, desapareço por minúsculos instantes deste cenário. Revejo-me em Pompeia, Roma, Paris, Londres, em Amesterdão, em Viena, em Veneza e em Génova, vejo subitamente e de relance todos os grandes amigos e aparece-me finalmente o rosto estranho desta jovem, montada no fiel Felício, que contrariamente à maioria dos corcéis, se manteve tranquilo e quase alheio a toda esta alteração. Vejo que me pede a sua companhia. Quer que a leve daqui para bem longe pois as suas pernas não são suficientemente rápidas para a transportar. Volto novamente a vislumbrar o real tamanho das coisas, mas muito turvas e ligeiramente desfocadas, com uma luz muito fina e intensa a tapar o centro das imagens. Um ponto branco mantém-se forte no centro da minha visão e a cabeça lateja e dói-me ligeiramente. Ao voltar de vez desta rápida viagem e refeito da surpresa, reparo com toda a atenção para as feições da rapariga. Olhos muito escuros e intensos, cabelos longos muito sujos e pintados com as tonalidades cinzentas da destruição, os braços magros e esguios, tal como as pernas que se apresentam bastante feridas e a necessitarem de cuidados médicos. Os olhos continuam a olhar para dentro da minha alma, como se também eles já me tivesse visto anteriormente, e o seu rosto redondo e sujo, com uns lábios perfeitos a desenharem uma boca larga e sorridente, pedem-me ajuda. Lefebvre mantém a sua força e coração de gigante em actuação. Mal se refez das suas actividades heróicas, começou imediatamente a dar instruções para tratar todos os feridos graves. Estava exactamente a iniciar essas tarefas quando reparei nesta jovem a tombar com violência no chão ao tropeçar num dos doentes da ala dos loucos. Quando o seu rosto se virou ficámos naquele impasse que por pouco a vitimava, não tivesse eu agido com rapidez. Grito por Lefebvre que não me consegue escutar, grito por Manuel Constâncio e Mestre Dufau. Só este último me escuta quando já estamos montados no Felício e nos preparamos para cavalgar daqui para fora. Digo-lhe que volto já, que vou seguir na direcção do palácio real para saber as novidades da corte. Temos de saber se terá el-rei e os ministros sobrevivido ao desastre. Temos de saber se somos necessários para os lados dos que mandam na cidade e no país. A rapariga volta a olhar com os seus escuros olhos castanhos na minha direcção. Sabe perfeitamente que a minha primeira vontade não é a de seguir em direcção ao paço real. Primeiro, vou procurar um qualquer lugar afastado de toda esta violenta realidade para lhe fazer umas perguntas. Terá também ela tido a mesma estranhíssima visão premonitória? Terei eu aparecido no seu pesadelo? A mais recente memória que guardei do seu rosto no meu pesadelo é igual, exactamente igual ao rosto que fita novamente o meu como se soubesse exactamente tudo aquilo que nos irá acontecer.

.

Sem comentários:

Enviar um comentário